top of page
ARS.png
quimbanda png.png

TRADIÇÃO DE QUIMBANDA

Feitiçaria Tradicional Brasileira

As origens da feitiçaria tradicional brasileira, a tradição de Quimbanda, remontam ao período colonial de nossa nação, quando um intricado complexo de tradições, culturas e influencias espirituais fervilhavam dentro de um escaldante caldeirão mágico. Falar sobre a gênese da Quimbanda é falar sobre a própria história do Brasil dentro do desenvolvimento da sociedade ocidental, colonialismo, imperialismo, escravidão, discriminação racial, perseguições religiosas e a destruição e esfacelamento das culturas africanas kimbundo-bantu e nagô-yorubá pelos impositores cristãos antes mesmo da chegada delas no Brasil. Na primeira parte deste texto vamos explorar a gênese da tradição de Quimbanda, seu primeiro momento ou desenvolvimento na história oculta da magia desde suas raízes na África até sua organização brasileira a partir das primeiras tentativas culturais de estruturação de cultos africanos como os calundus baianos e batuques gaúchos, e por meio deles as distintas denominações de candomblés, a cabula dos capixabas e a macumba dos cariocas, quando espiritismo kardecista misturava-se as práticas rituais da cultura kibundo-bantu, o que acabaria por dar formação a Umbanda.

A este primeiro momento ou gênese do Culto de Exu no Brasil um importante ingrediente deu a tônica do trabalho magístico do que seguiria sendo a tradição de Quimbanda, a saber, a cultura cipriânica da magia (feitiçaria ibérica popular) que trazia consigo a magia dos grimórios medievais (incluindo os salomônicos) e a demonologia europeia ou Culto do Diabo das feiticeiras ibéricas. Essa influência aportou no Brasil junto as bruxas exiladas pelo Santo Ofício de Portugal que logo se misturaram a índios e escravos africanos descontentes com o imperialismo colonial. Isso é importante lembrar: desde sua gênese neste primeiro momento a Quimbanda nasce de uma associação marginal de pessoas, revoltados contra o sistema vigente.

Na segunda parte de nosso estudo vamos nos debruçar sobre o segundo momento da Quimbanda no Brasil, após a década de cinquenta. Em 1951, um autor umbandista de inclinação ocultista fascinado pelas obras de Eliphas Levi, publicou um livro muito difundido e aceito como autoridade entre os umbandistas intitulada Exu. Como veremos com detalhes em outros textos desta coleção (DAEMONIUM, No. 2), Aluízio Fontenelle (1913-1952), o autor em questão, apresenta a Quimbanda como magia negra e arte das trevas, cruzando Exus livremente com demônios de um livro de feitiçaria (grimório) do Séc. XVIII, o Grimorium Verum. Ao fazê-lo, Fontenelle procura resgatar completamente a influência da demonologia europeia do primeiro momento da Quimbanda, desta vez com mais propriedade intelectual. É a partir de Fontenelle que os grupos e seguimentos modernos de Quimbanda começaram a surgir depois da década de sessenta.

Neste segundo momento também se intensificou a influência das tradições modernas de magia na Quimbanda, que ganhou uma associação mais estreita com o satanismo e com o luciferianismo, bem como com a magia cerimonial tradicional.

Nós veremos com detalhes cada um dos pontos mencionados acima. Antes, no entanto, eu gostaria de iniciar com um pequeno glossário de termos fundamentais:

  • Embanda: palavra kimbundo, língua do tronco linguístico bantu e que que designa o culto ancestral de magia e cura, cujo agente social ou sacerdote é o kimbanda. É da palavra embanda que vem a corrupção brasileira umbanda. Tecnicamente, é mais adequado dizer que a Umbanda vem da Quimbanda (no sentido de culto bantu) do que a Quimbanda vem da Umbanda, muito embora a Umbanda tenha desempenhado papel fundamental na formação da tradição de Quimbanda.

  • Kimbanda: palavra kimbundo, significa mago, xamã, feiticeiro ou curandeiro como um agente social e indivíduo que lida/conversa com espíritos ou com o mundo espiritual. Designa um sacerdote do culto de origem bantu de magia e cura ancestral. Tecnicamente, kimbanda está mais associado a prática do curandeirismo do que a prática da feitiçaria; o termo bantu adequado ao feiticeiro é muloji.

  • Quimbanda: feitiçaria tradicional brasileira formada a partir das influências kimbundo-bantu, nagô-yorubá, feitiçaria popular e demonologia europeia, cultura tupí-guaraní, catolicismo romano, satanismo e luciferianismo modernos. A palavra quimbanda é a versão portuguesa de kimbanda, escrita com qu não para designar diferença de culto, mas por falta de opção alfabética na época, quando a letra k não fazia parte do alfabeto ou língua portuguesa. No Brasil a tradição de Quimbanda tornou-se completamente independente de suas raízes africanas e como tal, só existe aqui. Trata-se de uma espiritualidade/ancestralidade 100% brasileira, como veremos adiante. Hoje, dividida em troncos distintos, a Quimbanda possui inúmeros seguimentos e interpretações diferentes de culto.

  • Feitiçaria-Kimbanda: terminologia pessoal, designando a arte ou tradição de feitiçaria brasileira próxima a abordagem kimbundo-banto que opera com os espíritos da natureza (no kimbundo, nkisis; no xamanismo tribal ameríndio, Xianús) e ancestrais espirituais (no kimbundo ngangas; no xamanismo tribal ameríndio, Onús), os Exus e Pombagiras da Quimbanda. Alternativa: feitiçaria tradicional brasileira.

  • Feiticeiro-Kimbanda: praticante de feitiçaria tradicional brasileira.

  • Feitiçaria Tradicional Brasileira: designa a arte de feitiçaria promulgada pela Cova de Cipriano Feiticeiro, a Quimbanda Ars Nigra (Quimbanda Arte Negra), norteada por antigas práticas de feitiçaria da Quimbanda Nàgô e rituais rupestres tribais que incluem magia natural (fórmulas herbais), comunicações com espíritos elementais (Xianús), forças primordiais (N'cálas), construção de fetiches, adoração de totens, sacrifícios propiciatórios, cura ancestral e autoconhecimento. A feitiçaria tradicional brasileira é uma Quimbanda que herda muitos fundamentos e práticas do xamanismo ancestral e tribal ameríndio norteado pelo Culto do Povo Onça (Kôto Kanguí). 

  • Quimbanda Brasileira: termo que inclui todos os grupos e seguimentos modernos de Quimbanda no Brasil:

Umbanda de Esquerda/Quimbanda Cruzada: todos os seguimentos de Quimbanda que nasceram e permaneceram vinculados a cosmovisão da Umbanda. Por volta de 1940 na Umbanda, os Exus e Pombagiras começaram a serem convocados no fim das sessões (giras), já quando todos os consulentes haviam ido embora. Essa parte no ritual umbandista chamava-se quimbanda. Os Exus eram convocados no fim das sessões para executarem a limpeza do ambiente. Com o tempo o trabalho com os Exus e Pombagiras na Umbanda foi transformando-se e transmutando-se de terreiro a terreiro até que cerimônias próprias a eles começaram a ser executadas. Deste momento em diante a quimbanda deixou de ser apenas uma parte do ritual de Umbanda para transformar-se em um rito independente, mesmo que ainda dentro da Umbanda; os Exus e Pombagiras, no entanto, permaneceram sob a autoridade espiritual dos Caboclos e Preto-Velhos, as entidades-chefe de cada terreiro. A partir desse momento lançaram-se as bases do que se conveniou chamar de Quimbanda Tradicional.

   Essas entidades-chefe do terreiro, os caboclos e preto-velhos, começaram a ser classificadas de direita (polo positivo do trabalho espiritual umbandista), os Exus e Pombagiras de esquerda (polo negativo do trabalho espiritual umbandista). Esse tipo de classificação – repetindo o padrão kardecista que condenou caboclos e preto-velhos como entidades inferiores/involuídas – junto a cultura cristã e o sincretismo entre os Òrìṣà e santos católicos, acaba por discriminar e demonizar a imagem de Exu. O Culto de Exu dentro da Umbanda tornou-se institucionalmente discriminado deste o início, estes sendo entidades inferiores que agem apenas sob a autoridade dos caboclos, preto-velhos e Òrìṣà, entidades superiores.

   Por conta dessa discriminação começaram a nascer seguimentos de Quimbanda paralelos dentro da Umbanda, o que hoje classificamos como Umbanda de Esquerda ou Quimbanda Cruzada, pois ao invés de distanciarem-se completamente do dogma religioso da Lei de Umbanda, permaneceram atrelados a ele, renegando a autoridade espiritual de Maioral e permanecendo com Exus e Pombagiras tutelados por Òrìṣà. O seguimento denominado Quimbanda Matriz é um exemplo de Umbanda de Esquerda, pois os Exus e Pombagiras estão sob a tutela dos mourões, quer dizer, os Òrìṣà de cabeça de cada adepto. Outros movimentos procuraram se distanciar completamente da Umbanda, como a Quimbanda Luciferiana, de fundamentação nàgô-yorùbá, com práticas do xamanismo tribal ameríndio e do ocultismo europeu (tradição ibérico-cipriânica de feitiçaria e tradição dos grimórios).

    A Quimbanda Cruzada admite também dentro da linha de trabalho de Exus e Pombagiras, sob a Lei de Quimbanda, a incorporação de caboclos, preto-velhos, marinheiros, baianos e ciganos.

   Quimbanda Luciferiana: seguimentos de Quimbanda completamente independentes* da Umbanda que começaram a eclodir após a publicação das ideias de Aluízio Fontenelle, um ocultista e autor umbandista que associou o Culto de Exu ao Culto do Diabo, conectando livremente os Exus aos demônios de um grimório conhecido como Grimorium Verum. É a partir de Fontenelle que a ideia e conceito de Maioral como Chefe e deidade suprema da Quimbanda foi completamente cristalizado. Ele diz: Sua majestade «Lúcifer» ou Exu-Rei é o dono e Senhor das Trevas. Considerado por sua falange como o «Absoluto», é quem domina o reino da terra, [...] apresentando-se com três denominativos que são: Lúcifer, Beelzebuth e Aschtaroth, Exu-Rei faz assim se apresentar perante a humanidade inteira, desde os primórdios das civilizações, e que nos atuais dias que ora atravessamos, vai aos poucos se modificando com a evolução e concepção que os espíritas julgam estar correta. [...] Como não poderia deixar de acontecer, na escala hierárquica do povo de Exu, também a mulher deveria representar um papel preponderante; e assim sendo, conhece-se nas leis de Umbanda e Quimbanda, a entidade mulher, que com a denominação de «Exu Pomba Gira», representa a figura que na Lei de Kabala e de acordo com o pantáculo de Lúcifer, está representada como um bode com seios de mulher, possuindo todas as características do Bode do Sabbath – Baphomet de Mendes, representando a arte diabólica da inveja, do ódio, da traição etc.

   Danilo Coppini, autor moderno de Quimbanda Luciferiana completa: A imagem de Baphomet torna-se a imagem de Satan/Lúcifer cultuado pelos bruxos em sua ritualística de «Sabbath Negro», onde o deus adorado era o «Bode Negro»Todos os seguimentos de Quimbanda, não importa o nome, que cruzam livremente Exus com demônios e associam Maioral ao Diabo, a hierarquia infernal (a Trindade do Oposto) ou deuses antigos, são classificados como Quimbanda Luciferiana. Exemplos são a Kimbanda Malei, Quimbanda Nàgô** e a Corrente LTJ49, sendo estes seguimentos de Quimbanda completamente distintos um do outro. Tecnicamente, podemos dizer que a Quimbanda Luciferiana vem da fundamentação nàgô, adotando práticas do ocultismo europeu (demonologia/demonolatria, tradição de feitiçaria diabólica ibérico-cipriânica, tradição dos grimórios e luciferianismo/satanismo). Como veremos no curso deste livro (DAEMONIUM, No. 2), existe um erro bem amador em cruzar Exus e demônios que escapou ao olhar de muitos feiticeiros-kimbanda.

   Essa influência do Culto ao Diabo já estava presente no primeiro momento do Culto de Exu no Brasil, quando aqui aportaram as feiticeiras ibéricas no Séc. XVI, exiladas pelo Santo Ofício de Portugal e já era rastreada desde a macumba carioca por João do Rio (1881-1921) no início do Séc. XIX. Fontenelle renovou essa influência demonológica no segundo momento do Culto de Exu após a década de cinquenta.

[* Nota]: O termo Quimbanda Independente, ou a palavra independente conectada a Quimbanda é um equívoco. Efetivamente, a Quimbanda como sistema nunca foi dependente ou esteve associada a qualquer culto. O tempo Quimbanda Luciferiana de igual modo é equivocado, pois no sentido filosófico do termo luciferiano, toda Quimbanda é de certo modo luciferiana, segundo sua própria gênese.

[** Nota]: Uma genuína e autêntica tradição de Quimbanda Luciferiana trata-se de um culto tradicional ao Diabo na forma do Chefe Império Maioral, o Senhor das Trevas. Ela recebe profunda influencia do Ocultismo europeu, feitiçaria ibérica ou tradição do Sabbath da Bruxas e não tem problema em cruzar práticas da Quimbanda com técnicas da goécia (antiga e moderna) e outras vertentes mágicas. O elemento central da Quimbanda Luciferiana é a filosofia luciferiana de vida adotada por seus adeptos, baseada nos princípios da rebeldia e liberdade, da luz e da evolução pessoal, do conhecimento superior (gnose), da coragem, força e honra, da disciplina, equilíbrio, resistência, estratégia e paciência, da compaixão sem propósito, da tolerância e da crueldade sem arrependimento.

[*** Nota]: Alguns eruditos desprivilegiados têm insistido que a Quimbanda de fundamentação nàgô não tem culto ao Chefe Império Maioral (ou Maiorais), o Diabo. Por uma medonha incompetência intelectual, eles têm vociferado: Quimbanda é só culto a Exu e Pombagira. O Chefe Império Maioral, o Diabo, é a Quimbanda como culto religioso tradicional. Sem Maioral não há Quimbanda: ele é a primeira encruzilhada de fogo. O que estes feiticeiros-kimbanda de assentamento em sala de jantar, sobre a pia da cozinha ou na varanda de casa entendem por Quimbanda Nàgô é um tipo de toque de Exu e Pombagira dentro dos terreiros de Candomblé, o que em tempo algum pode ser considerado Quimbanda. Quimbanda é um culto com um sistema constituído de desenvolvimento espiritual que não está vinculado a nenhuma outra cosmovisão que não seja a banto, mesmo que a fundamentação de culto seja nàgô. Qualquer genuíno Mestre de Quimbanda Nàgô irá lhe ensinar que a estrutura de culto envolve a veneração dos Maiorais, Exu Gererê como chefe da corrente e os demais Exus e Pombagiras ancestrais dos Mestres alimentados por um fluxo contínuo de transmissão de àṣẹ.

   Quimbanda Tradicional: se a Quimbanda Cruzada derivou-se da Umbanda, a Quimbanda Tradicional trata-se de todo e qualquer seguimento de Quimbanda derivado do Candomblé (Angola, Nagô, Ketu, Batuque, Tambor de Mina etc.), no entanto, diferente da Quimbanda Cruzada, a Quimbanda Tradicional tornou-se completamente independente da influência dos Orixás, constituindo culto e cosmovisão próprios, herdando dessas tradições apenas a metalinguagem, estrutura e composição de ritos e sacrifícios propiciatórios. E se na Quimbanda Cruzada pouco ou quase nenhum sacrifício é oferecido a Exu, na Quimbanda Tradicional o sacrifício de aves, caprinos, suínos e bovinos trata-se da oferenda principal a Exu, várias vezes ao ano.

   É da Quimbanda Tradicional que se deriva, efetivamente, o trabalho com os Sete Reinos de Quimbanda (Encruzilhadas, Cruzeiros, Matas, Cemitérios, Mar/Praia, Almas e Lira), posteriormente adotados por todos os seguimentos de Quimbanda. Os Reinos da Quimbanda foram organizados fundamentalmente na Quimbanda Tradicional como uma herança da divisão dos reinos nas tribos da cultura kimbundo-bantu. Somente nos movimentos modernos de Quimbanda que os Sete Reinos foram associados as forças planetárias da magia cerimonial europeia.

   Alguns templos e terreiros de Quimbanda Tradicional aceitam Maioral como deidade suprema da Quimbanda, mas é aqui que encontramos a mais diversificada interpretação sobre essa deidade. Na Quimbanda da Ialorixá Mãe Kina, por exemplo, Maioral é cruzado com Maria Mulambo, a Guia Espiritual dela. É comum na Quimbanda Tradicional interpretar Maioral de Quimbanda como o próprio Guia Espiritual que, em outros seguimentos, trata-se do Exu Mor, não o próprio Maioral. Às vezes na Quimbanda Tradicional Maioral aparece com o Baphomet de Eliphas Levi, diferente da Quimbanda Luciferiana onde Baphomet aparece como o glifo para a deusa Asherah (Qutesh).

   Como o leitor poderá averiguar, nenhuma dessa definições pode ser escrita em pedra, pois é muito difícil definir o que é e o que não é; os muitos fundamentos e significados mudam de culto para culto, de família para família dentro da tradição de Quimbanda.

  • Poderosos Mortos: termo que designa as almas deificadas na tradição de Quimbanda, os Exus e Pombagiras, Guias e Mestres Espirituais da humanidade. Almas deificadas são espíritos ancestrais iluminados que auxiliam na prática espiritual e no cumprimento do destino dos feiticeiros-kimbanda. Os termos Exu e Pombagira não são nomes quaisquer, mas títulos de honraria e dignidade espiritual; esses títulos não são conferidos a quaisquer espíritos de mortos (Eguns), mas a almas merecedoras de participarem das Hordas e Falanges de Vossa Santidade Maioral, a Fonte de onde emanam todas as Legiões de Exus e Pombagiras, bem como os Sete Reinos da Quimbanda. A Quimbanda oferece, dessa maneira, um caminho mágico e místico para evolução da alma, despertar e deificação (iluminação) espiritual.

  • Égún: termo nàgô-yorùbá que indica diversos tipos de almas de mortos que não passaram por um processo de deificação (iluminação), tendo partido do reino da geração em total ignorância e obscurecimento espiritual. Na feitiçaria tradicional brasileira, o trabalho com égún constitui uma cura da ancestralidade pessoal e começa no Rito de Iniciação na tradição de Quimbanda. Em uma das etapas da iniciação, os aprendizes junto ao mestre iniciador alimentam com sacrifícios propiciatórios a mesa/altar ou cáfua dos antepassados (égún) da casa e dos antepassados familiares do iniciante. A partir desse momento o feiticeiro-kimbanda inicia um processo de conhecimento e conversação com égún, primeiro os antepassados, depois, com experiência, outros tipos égún diversos, podendo oferecer-lhes sacrifícios por meio de sua Faca de Égún. O trabalho magístico com égún é um dos processos mágicos mais importantes na feitiçaria tradicional brasileira, pois eles constituem a primeira linha de defesa espiritual dos feiticeiros-kimbanda.

  • Quiumbas: são poderosos magos negros nos planos internos, inimigos dos feiticeiros-kimbanda; os Quiumbas (ou Kiumbas) são égún, no entanto, com experiência e conhecimento de feitiçaria, magia e alquimia adquiridos em vida. Tratam-se das almas de feiticeiros que quando encarnados falharam em deificar a alma, tornando-se poderosos obsessores, às vezes, tão fortes quanto Exus e Pombagiras. Os Quiumbas utilizam outros égún diversos como seus servidores, atacando e obsediando incautos através de uma gigantesca legião de espíritos mortos. Assim como existem classes de égún distintas, também existem classes de Quiumbas distintas.

  • Encantados: na feitiçaria tradicional brasileira os encantados são espíritos humanos que não morreram fisicamente e foram conduzidos a clãs (ou aldeias) espirituais nas profundezas das águas no corpo da Mãe Terra (ou na linguagem da Quimbanda, no Corpo de Maioral). Os Encantados são os primeiros xamãs de nossa terra e passaram ao outro lado da existência a parte dos processos naturais de morte pelo conhecimento que obtiveram diretamente dos Elementais. Entendemos que estes primeiros xamãs que se tornaram os Encantados Primordiais não eram meros humanos, mas seres que em vida haviam conquistado uma integração total com o Corpo da Mãe Terra, os N'cálas (espíritos/forças primordiais) e Xianús (elementais). Através do poder dos Poderosos Mortos (consistente com a cosmovisão banto) os feiticeiros-kimbanda têm acesso direto aos Encantados nos Sete Reinos da Quimbanda para diversos tipos de trabalhos espirituais.

  • Elementais: termo genérico no ocultismo que designa os diversos espíritos/forças da natureza com seus nomes e características individuais em cada cultura, sendo eles familiares, servidores ou tutelares. Na feitiçaria tradicional brasileira eles são os Xianús/exus (com letra minuscula).

  • N'cálas: forças primordiais da Natureza: o Sol (Xôripé) e a Lua (Jaci-Porã), a chuva (Latã) e as nuvens (Mutã), os relâmpagos e os trovões (Xuã), os ventos (Pukã).

  • Xianús: são os espíritos de todas as coisas, mantenedores da vida e estrutura do cosmos (na cosmovisão do xamanismo tribal ancestral ameríndio). Na feitiçaria grega, são os daimones, no ocultismo moderno, são genericamente chamados de Elementais. Os Xianús são fragmentos do Grande Espírito que alimentam a vida no cosmos. Na linguagem da feitiçaria tradicional brasileira, os Xianús (espíritos elementais diversos) trabalham sob a autoridade espiritual dos Poderosos Mortos, por esse motivo também designados como exus (com letra minúscula). 

  • Ancestrais: termo que designa o trabalho com alma de mortos, sejam elas deificadas ou não, familiares ou espirituais. Ancestrais espirituais são os diversos espíritos de antigos xamãs e feiticeiros de cultos de feitiçaria brasileira que não têm onde trabalhar e se apresentam nos Reinos da Quimbanda subordinados a Exus e Pombagiras. Pantera Negra, por exemplo, é um ancestral (Onú, uma alma humana divinizada), guardião individual no Culto do Povo Onça (Kotô Kanguí) que decidiu trabalhar como Exu/Caboclo na Quimbanda, sendo assimilado nas Hordas do Chefe Império Maioral, o Diabo.

  • Chefe Império Maioral: trata-se da deidade suprema da Quimbanda, Deus e Diabo em uma só persona. O arquétipo de Maioral na Quimbanda já existia desde seu primeiro momento, mas foi somente em seu segundo momento, a partir da obra de Aluízio Fontenelle, que o conceito e ideia de Maioral cristalizou-se efetivamente. A tradição cipriânica da magia (feitiçaria ibérica popular), a demonologia europeia e tradição dos grimórios salomônicos e modernos influenciaram profundamente a formação do Culto de Exu na Quimbanda, inspirando sua iconografia, de onde a alcunha de Maioral foi dada ao Diabo como chefe supremo de todas as legiões de demônios no inferno. É dessa ideia do Diabo como Senhor das Trevas e Chefe Supremo dos demônios do inferno que nasceu o conceito de Maioral de Quimbanda, o Chefe Império dos Sete Reinos de Quimbanda e todas as Falanges de Exus e Pombagiras. A ideia do Diabo como símbolo da força e selvageria da Natureza, tanto humana quanto natural, e Senhor dos Feiticeiros, mediador entre os espíritos tutelares e os feiticeiros, foi diretamente associada a Vossa Santidade Maioral, mediador dos feiticeiros-kimbanda e seus Exus Tutelares. Na obra de Aluizio Fontenelle, Maioral foi entronado como Senhor dos três chefes infernais: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth. Estes três chefes infernais, por outro lado, estando abaixo de Maioral, são, no entanto, líderes das Falanges de Exus e Pombagiras, associados aos daimones (ou demônios) de um grimório do Séc. XVIII, o Grimorium Verum. Com o passar do tempo o conceito de Maioral foi adaptado nos diversos terreiros e templos de Quimbanda, cada qual com uma interpretação particular da ideia e conceito de Maioral.

  • Deificação da alma: muitos se enganam aqueles que pensam que a tradição de Quimbanda adota a visão kardecista de reencarnação como ocorre na Umbanda. Diferente disso, a tradição de Quimbanda mantém o ponto de vista da cultura kimbundo-bantu, que não vê sentido algum na reencarnação como uma sucessão cíclica de vidas. Diferente disso, a Quimbanda vê a continuação do espírito após a morte do corpo físico, podendo ele influenciar a matéria e desfrutar dela temporariamente através do fenômeno da incorporação mediúnica. Isso significa que após a morte o espírito torna-se membro de uma família espiritual, participando temporariamente da comunidade, estando incorporado em um adepto da tradição. Para tal, em vida, o espírito deve ser deificado.

   Deificação é um termo que significa divinizar ou endeusar a alma. É um conceito presente no platonismo, neoplatonismo médio, tardio e cristão. Trata-se do esforço pessoal em iluminar a alma, quer dizer, preenche-la de luz. O termo é trazido a tradição de Quimbanda para explicar o processo de transformação na alma que garante o espírito do feiticeiro-kimbanda a participar das Falanges de Exu e Pombagira no post mortem.

   Na tradição de Quimbanda o processo de deificação da alma ocorre através de 1. o conhecimento e conversação com os Poderosos Mortos e; 2. através do processo do corte ritualístico propiciatório. Esses são os mecanismos fundamentais para deificação da alma na Quimbanda. Diferente do processo de deificação da alma na teurgia neoplatônica ou no cristianismo, a deificação da alma na Quimbanda não se estrutura ao redor de códigos morais e éticos. Se existe um código de ética na Quimbanta, trata-se deste: Força & Honra. O conhecimento e conversação com os Poderosos Mortos amplia a consciência do adepto, enriquecendo-a com as virtudes da honra e da força. O neoplatonismo e o cristianismo são tradições espirituais de mão direita. A Quimbanda é uma tradição espiritual de mão esquerda. Os métodos de deificação nessas duas mãos, podemos dizer, compartilham técnicas similares de deificação da alma, no entanto, adotam cosmovisões e códigos de crença distintos.

  • Caminho da Mão Direita: trata-se do alinhamento espiritual com o/um plano demiúrgico cosmológico. Um adepto da mão direita deseja encontrar o seu lugar na grande engrenagem cosmológica do demiurgo criador. Existe um plano estabelecido e delineado para cada alma encarnada no reino da geração. Nessa jornada constitui uma tarefa fundamental descobrir qual é o seu lugar na grande engrenagem do cosmos e cumprir o seu destino. Aqueles que possuem a fagulha do despertar espiritual e que compreendem a necessidade de um trabalho íntimo sobre a alma, buscam alimentá-la com as virtudes de criaturas espirituais divinas, deuses, anjos, arcanjos e bons daimones, regências com funções específicas na demiurgia do cosmos.

   A alma se alimenta através do ochēma (o veículo pneumático ou corpo de luz). Por meio desse mecanismo natural da alma, o adepto da mão direita invoca as potencias celestiais para carregar seu ochēma de luz, até que ele se torne reluzente. Na tradição da magia cerimonial, um símbolo perfeito do ochēma carregado de luz, quando ele se torna um augoeides e deificador da alma, é a Lamparina Mágica cuja luz nunca pode se apagar dentro do templo. A luz que a Lamparina Mágica transmite é secreta e trata-se de uma força oculta geradora. Sobre a Lamparina Mágica Aleister Crowley escreveu em Livro 4: Esta Lâmpada é a luz da alma pura; ela não tem necessidade de combustível. Ela é a Sarça Flamejante inconsumível que Moisés viu, a imagem do Altíssimo. [...] Esta Lâmpada não é feita pela mão humana; ela existe sozinha para sempre; não tem partes, ou personalidade; é antes do «Eu Sou». Poucos podem contemplá-la; no entanto está sempre ali. Para ela não há aqui e nem ali, nem então nem agora todas as partes da linguagem estão abolidas, a não ser o substantivo; e este substantivo não é encontrado quer na fala humana, quer na fala divina. É a Palavra Perdida, cujo sétuplo eco IAO e AUM são a música moribunda. Sem esta Luz o Magista não poderia trabalhar; no entanto poucos são os Magistas que souberam dela, e menos ainda aqueles que contemplaram seu brilho. Infere-se pelas palavras de Crowley que o augoeides vibra no tom energético de IAO e AUM. Essas são fórmulas mágicas que representam ou expressam a harmonia perfeita do cosmos. Fica fácil saber porque o augoeides deifica a alma: porque ela se harmoniza perfeitamente, nestas condições únicas, a toda estrutura do cosmos. Então o adepto encontra seu lugar e cumpre com seu destino derradeiro.

   A característica indelével do caminho da mão direita é sua dependência das leis divinas e regentes do cosmos. Constitui a tarefa de um adepto da mão direita se submeter a essas leis para que possa conquistar a harmonia perfeita com o cosmos. Esse plano divino e determinante do destino de cada alma pode ser encontrado nas tradições judaicas, cristãs, islâmicas, budista e bramânica, suas escolas, subescolas e seitas tradicionais, embora seja possível encontrar grupos de mão esquerda dentro de todas essas tradições.

  • Caminho da Mão Esquerda: trata-se da independência espiritual do plano demiúrgico cosmológico. O adepto da mão esquerda não está interessado em se alinhar a um plano demiúrgico divino. Ele leva em consideração a posição do homem e seu impulso inato em direção a liberdade e independência para se tornar o Senhor e Regente de seu mundo. Essa é a busca central do adepto de mão esquerda, adquirir independência total do plano divino de criação.

   É o caminho do adversário, uma via de oposição e como tal, o caminho da mão esquerda é rotulado como maligno, diabólico e macabro. Diferente do adepto de mão direita, o adepto de mão esquerda não está interessado em ser o bom moço que mora ao lado, o bom moço para se casar, o filho de deus, o bom moço de família. Ele não adere ao programa estabelecido e impelido por uma força genuína de seu interior, se rebela contra o sistema.

   Seguindo esse ímpeto genuíno de seu interior, o adepto de mão esquerda segue os impulsos individuais e dinâmicos de sua consciência, abraçando completamente o mundo com regozijo e prazer, nos fracassos ou nas vitórias, nas tristezas ou nas alegrias, nas dores ou no conforto; a existência humana é aceita como é, às vezes perfeita, às vezes não; às vezes desperta, às vezes não.

   O caminho da mão esquerda é a via da desunião com o cosmos. Um caminho de independência e, portanto, de solidão. Esse é um mecanismo fundamental de aprimoramento espiritual. Na solidão o adepto de mão esquerda procura refinar e aperfeiçoar suas qualidades paranormais inatas, desenvolver o Logos (Lúcifer) em condições muito superiores a maioria das pessoas. É um caminho de aperfeiçoamento espiritual e despertar das potências da alma através do trabalho individual para separá-la completamente do plano demiúrgico de criação em um processo de autodeificação, quer dizer, a deificação da alma através do despertar da Chama Negra ou despertar do Dragão. Duas características fundamentais fazem do adepto um mago negro, quer dizer, um mago do caminho da mão esquerda:

   1. Autodeificação: o esforço pessoal para deificar a alma, conquistando independência espiritual e uma qualidade desperta ou iluminada do Intelecto, quer dizer, o Logos (Lúcifer). O trabalho de autodeificação envolve:

   Individualismo: a conquista de um intelecto desperto separa o adepto de mão esquerda do corpo coletivo de indivíduos engajados na participação da demiurgia do cosmos.

   Iniciação: a busca permanente pelo aperfeiçoamento e refinamento das capacidades da alma como meio de evolução e despertar espiritual; a superação das falhas de caráter do Ego corrompido, o equilíbrio e purificação das emoções e estados mentais. Uma busca contínua pela evolução e empoderamento pessoal.

   Magia: o que envolve o contato com espíritos e a manipulação de energia (feitiçaria) para fins de evolução e aperfeiçoamento pessoal e a transformação da realidade conforme a vontade do mago.

   Psicurgia: o que envolve o diligente trabalho de aperfeiçoamento das capacidades psíquicas. O adepto de mão esquerda está comprometido com o despertar de sua paranormalidade. Nessa jornada, o exercício da psicurgia é fundamental para o desenvolvimento total do universo subjetivo do mago, garantindo sua independência espiritual.

   2. Antinomianismo: são práticas espirituais e hábitos pessoais que contrariam o status quo cultural mágico-religioso e as normas convencionais morais de bem e mal da sociedade. O adepto da mão esquerda se identifica – e tem coragem de assumir – com práticas culturalmente tidas como malignas e impuras. Eles se envolvem geralmente com o tipo de exercício espiritual culturalmente temido pela grande maioria das pessoas como, por exemplo, a necromancia ou necrurgia, o contato com espíritos ancestrais.

   O termo draconiano se aplica ao adepto de mão negra, geralmente um expurgo social devido as suas escolhas pessoais, um forasteiro dentro da própria família. E é preciso que seja assim: na intenção de adquirir independência espiritual através da iniciação, ele necessita se isolar; parte de sua conduta antinomiana onde o feio se torna belo, o mal se torna bom, o impuro se torna puro, as trevas se tornam luz etc., lhe serve para cultivar essa separação.

   Tecnicamente falando, o antinomianismo é o exercício da quebra de regras sócio-religiosas de uma cultura. O adepto da mão esquerda é um criminoso, não no sentido corrente da palavra, mas porque ele tem coragem de assumir posicionamentos heterodoxos dentro da ortodoxia cultural. Da mesma maneira que ele é destemido em quebrar as leis cósmicas, também o é para quebrar as regras comportamentais de uma sociedade. Mas nessa jornada quebrando todas as regras sociais e demiúrgicas, ele busca cultivar um refinado senso de justiça baseado em fatos naturais, conhecimento e poder. Isso produz um rigoroso código de ética pessoal que o capacita estar além do corrente bem e mal. Esse código de ética pessoal, diferente dos códigos de ética dos adeptos de mão direita, é baseado no entendimento óbvio e na lucidez sobre fatos observáveis, que é o trabalho do Logos (Lúcifer), e não se trata de seguir cegamente mandamentos cravados em pedra no alto de uma montanha.

  • Veículo pneumático: toda a tradição do ocultismo moderno, incluindo também as tradições de cabala crioula no Brasil, derivam o conhecimento que transmitem acerca dos corpos internos (corpo etérico, corpo astral, corpo protoplasmático etc.), quer dizer, o veículo aéreo (pneumático) da alma, que a conecta ao corpo físico e ao reino da geração, das tradições hinduístas ou budistas via Sociedade Teosófica que procurou escancarar as portas do oriente para o ocidente. Essas escolas orientais, hindus e budistas, desenvolveram inúmeras doutrinas acerca dos corpos internos, numerando-os de forma e nome diversificados. Como sempre tenho dito e escrito, não precisamos buscar no Oriente um conhecimento que temos aqui no Ocidente, tão ou mais profundo do que aquele que importamos dessas escolas orientais. A Tradição Ocidental de Mistérios produziu sua própria gnose acerca do que se conveniou chamar de corpo astral, nomeado pela tradição platônica como ochēma-pneuma, o veículo pneumático da alma; de todas as almas no reino da geração. E como estabeleço uma ponte entre a tradição de Quimbanda e as escolas de mistérios arcanas do passado no Ocidente, concluo que as noções platônicas e neoplatônicas acerca do veículo aéreo da alma estão muito mais alinhadas a tradição de Quimbanda (e tradições mágico-culturais da África) do que o conhecimento que vem do Oriente via o ocultismo cientificista moderno.

   Na tradição platônica o ochēma-pneuma aparece no Timeu de Platão (428-348 a.C.) como um veículo aéreo para a alma e uma criação do próprio Demiurgo; Porfirio de Tiro (233-305 d.C.), filósofo neoplatônico aluno de Plotino (204-270 d.C.) e influenciado por ele, também professor de Jâmblico (245-325 d.C.), estabeleceu que o veículo pneumático trata-se de um construto residual formado pelas virtudes planetárias na medida em que a alma desce ao reino da geração; Jâmblico descorda de Porfírio, uma vez que suas conclusões levam a crença da corruptibilidade do veículo pneumático e sua posterior dissolução. Para Jâmblico e os neoplatônicos tardios o veículo aéreo da alma era imortal, incorruptível e deveria ser enriquecido com luz ao ponto de se tornar um augoeides, um ovo de luz reluzente capaz de deificar a alma, tornando-a pura e prístina, uma alma purificada. Através do seu corpo de luz reluzente, as almas purificadas podem desfrutar da experiência do reino da geração quantas vezes quiserem, pois estas almas purificadas administram o cosmos junto aos deuses, como Jâmblico propõe. Isso está em simetria com a cultura kimbundo-bantu onde membros da comunidade, devido aos procedimentos mágico-teúrgicos do culto, carregam seu ochēma-pneuma (mfumu-kutu na cultura kimbundu-bantu) de luz ao ponto de após a morte participarem da família espiritual da comunidade como homens completos (zina), mestres e guias ancestrais, tatás (mais velhos) ukexilú-nzumbi, almas dotadas de poderes e capazes de desfrutar da experiência no reino da geração através do fenômeno da incorporação. É interessante notar que o mfumu-kutu (o veículo pneumático da alma) na cultura kimbundu-bantu é uma dádiva de Nzambi (o Criador), o que está em sincronia com as ideias de Platão em Timeu.

      Na tradição platônica e neoplatônica tardia, tudo o que existe na região sublunar possui ochēma-pneuma, do contrário, não seria possível estar no reino da geração. Assim, não apenas almas encarnadas, mas espíritos diversos, animais, vegetais e minerais também possuem ochēma-pneuma. De igual modo, tudo o que produz sombra na cultura kimbundu-bantu, homens, animais, vegetais, minerais, construções etc., possuem mfumu-kutu. E da mesma maneira que a forma é importante na tradição platônica e neoplatônica, de igual modo a forma também é importante na cultura kimbundu-bantu, pois sem a forma a própria vida se esvai.

   A tradição de Quimbanda desenvolveu no Brasil sua própria doutrina soteriológica através da qual feiticeiros-kimbanda podem ser admitidos aos Reinos de Quimbanda nas Legiões de Exus e Pombagiras. Através da disciplina individual e dos métodos mágico-teúrgicos do culto os feiticeiros-kimbanda têm de despertar a Chama Negra ou Dragão Negro da alma, enriquecendo o ochēma-pneuma de Luz Negra ao ponto de torna-lo um ovo negro reluzente, quando está apto a transformar a alma para adentrar as Legiões de Exus e Pombagiras sob autoridade de Vossa Santidade o Maioral de Quimbanda. Poeticamente, quando a alma está completamente coberta pela capa negra de Exu, ela se torna apta a tornar-se após a morte um Exu ou Pombagira.

  • Ars Nigra: a Feitiçaria Ars Nigra é o nome que dei ao meu exercício pessoal de feitiçaria tradicional brasileira: a tradição de Quimbanda ou Culto de Exu. Este termo, Ars Nigra, deve ser entendido como sinônimo para as artes negras de feitiçaria e envolve o conhecimento e conversação com os espíritos dos mortos na posição de deidades tutelares e, através deles, espíritos da natureza de todos os tipos, do reino da geração aos éteres superiores. Trata-se de um culto religioso teúrgico e sacerdotal que envolve sacrifícios propiciatórios aos espíritos através da imolação de aves, caprinos, bovinos e répteis.

   Na Tradição Oculta o termo Artes Negras faz referência a matérias como feitiçaria, demonologia, astrologia, alquimia, tradição dos grimórios, o Culto do Diabo e a necromância. Todas essas matérias influenciam profundamente minha interpretação e exercício de Quimbanda. Pouca ou quase nenhuma atenção tem sido dada na tradição moderna da magia ao aspecto mais importante da iniciação nos arcanos da Arte dos Sábios: a necromancia. Este termo, necromancia, tem sido tratado com desrespeito e desdém por essas tradições modernas. Seja por ignorância, medo ou incompetência, os magos modernos têm evitado o contato com os ancestrais, os espíritos dos mortos que compõem nossa egrégora pessoal. Na Antiguidade até a Idade Média, muito respeito era conferido ao culto aos ancestrais, pois dele vem as raízes que provêm força mágica as ações magísticas dos magos e feiticeiros. As tradições de cabala crioula não só guardaram como um relicário reluzente a veneração dos mortos divinizados, elas também refinaram e aperfeiçoaram o culto.

   A Quimbanda Ars Nigra nasceu em um Chão de Quimbanda do Povo Onça (ou Falange dos Panteras Negras) no Reino da Makaia cujas influências são as culturas nàgô-yorùbá e banto africanas, a feitiçaria ibérica cipriânica-faustina (veja o texto A Feitiçaria Tradicional Brasileira na aba de Reflexões, entrada de 20/05/2020), Culto aos ancestrais e o Culto aos XianúsN'cálas do xamanismo ameríndio. Disso resulta uma prática de Quimbanda de inclinação tribal (xamânica), de filosofia luciferiana, de comportamento satanista, de fundamentação nàgô-yorùbá e de cosmovisão banto.

  • Necromancia: Este é o nome técnico que a Tradição Oculta dá ao tráfico com espíritos dos mortos para fins de magia e divinação. O termo nigromancia é uma designação (e deturpação) moderna de necromancia e foi utilizado na Idade Média para se referir a todo tipo de arte das trevas, principalmente a convocação de demônios. Nigromancia é a combinação de duas palavras: a hebraica nigar, que significa coletar, acumular, colecionar; e a grega manteia, quer dizer, mancia como um incenso específico para convocação de demônios. O termo mancia como incenso para convocação de demônios é pouco conhecido, sendo seu significado mais usualmente conectado a divinação. Necrurgia é um termo moderno que designa o contato com os mortos para os fins únicos de magia. No entanto, o termo necromancia abrange todas estas designações e inclui o tráfico com mortos tanto para magia quanto para divinação.

  • Cabala Crioula: termo que designa todas as tradições religiosas africanas ou com influência africana na realização do culto: Vodu, Ifá, Candomblé, Umbanda, Quimbanda etc.

  • Iniciação na Quimbanda: como uma genuína tradição iniciática, a Quimbanda exige iniciação presencial. Existem vertentes de Quimbanda (não confundir com Linhas de Quimbanda) como a Xambá que permitem auto-iniciação com acompanhamento a distância. Nós repudiamos veementemente essa ideia! Para discutir isso, precisamos nos debruçar sobre o conceito de iniciação.

   A iniciação é um rito magístico de passagem, simbólico e sociocultural que marca a transição da vida profana para a vida sagrada; trata-se de uma cerimônia de renascimento espiritual. Sobre a Iniciação Mircea Eliade (1907-1986) diz: Amiúde afirma-se que uma das características do mundo moderno é o desaparecimento da iniciação. [...] A originalidade do «homem moderno», sua novidade com relação às sociedades tradicionais, é precisamente sua vontade de se considerar um ser unicamente histórico, seu desejo de viver em um Cosmos radicalmente dessacralizado. [...] A maioria das provas iniciáticas implicam, de um modo mais ou menos transparente, uma morte ritual seguida de uma ressurreição ou de um novo nascimento. [...] Todos os ritos de renascimento ou de ressurreição, e os símbolos que eles implicam, indicam que o noviço alcançou um outro modo de existência, inacessível àqueles que não enfrentaram as provas iniciáticas e que não conheceram a morte.

   A iniciação está presente em inúmeras culturas, muitas vezes, imperceptível entre os muitos rituais diários da vida de cada ser humano; e na medida em que o homem passa por esses ritos culturais de iniciação ocorre um desenvolvimento físico, emocional, intelectual, psicológico e social. A passagem da puberdade para vida adulta, por exemplo, é um rito de iniciação. Na sociedade moderna trata-se de algo trivial, quase que sem importância. No entanto, internamente, quem passa por ele transforma-se. Essa é a essência do rito de passagem: uma transformação real no ser.

   Os rituais magísticos de iniciação estão presentes em inúmeras tradições mágico-culturais desde o nascimento do homem. Eles se tratam de ações magísticas e a transmissão oral de gnose que reconfiguram padrões internos por meio de uma morte cerimonial e um novo nascimento dentro de uma comunidade. Para tal acontecimento histórico na vida espiritual de um adepto, é preciso duas peças fundamentais: o iniciante e o iniciador juntos em uma cerimônia ritualística. Mircea Eliade explica: A morte iniciática é, então, um recomeço, jamais um fim. Em nenhum rito ou mito encontramos a morte iniciática unicamente como fim, mas como condição «sine qua non» de uma passagem a outro modo de ser, prova indispensável para se regenerar, isto é, para começar uma nova vida.

   O Terreiro/Templo de Quimbanda Cova de Cipriano Feiticeiro oferece iniciação na feitiçaria tradicional brasileira, a tradição de Quimbanda, através da Ordem Negra de Quimbanda. A Ordem opera com duas Linhas de Quimbanda: a Linha dos Caveiras do Sr. Exu Caveira e a Linha dos Caboclos Quimbandeiros, do Sr. Exu Pantera Negra.

  • Ordem Negra de Quimbanda: a ordem magística que gerencia internamente os trabalhos externos do Terreiro/Templo de Quimbanda Cova de Cipriano Feiticeiro. O currículo da ordem se estende por três graduações espirituais: noviço, iniciado e mestre.

PRIMEIRO MOMENTO DO

CULTO DE EXU NO BRASIL

O primeiro momento do Culto de Exu no Brasil começa fora de nossas terras, quando os portugueses aportaram na África em 1482. Diogo Cão, navegador português da corte de Dom João II, chegou ao Reino do Congo e estabeleceu conexões culturais com a corte do Rei Nzinga Nkuwu, que governou de 1470 a 1509. A partir desse primeiro contato iniciou-se um processo de miscigenação cultural entre os Reinos do Congo e de Portugal, estreitando laços comerciais, políticos e religiosos, até que Nzinga Nkuwo e toda sua família real foram batizados na fé católica, tendo ele assumido o nome de João I. Note que os africanos decidiram ser catequizados pela própria vontade do Rei que deslumbrou-se com o estilo de vida português. Ao assumir o trono do Reino do Congo após a morte do Rei, seu filho, Nzinga Mvemba, que assumiu o nome cristão de Afonso I, estreitou mais ainda os laços com Portugal, estabelecendo o cristianismo como religião oficial do Reino.

A partir de Afonso I, que reinou de 1509 a 1543, iniciou-se uma profunda inculturação e o cristianismo nesse primeiro momento tornou-se deveras africanizado. Sacerdotes e missionários cristãos no Congo tinham o mesmo status social dos feiticeiros e sacerdotes locais. Os objetos litúrgicos do culto cristão eram chamados de nkisi, facilitando o entendimento de que eles possuíam vida e poder. Foi a partir desse momento, através da evangelização e catequização cristã que os Santos católicos foram sincretizados com as forças da natureza, os nkisis (Orixás para cultura yorubá). É interessante notar ainda que nesse processo de sincretização o Orixá Exu, por suas características fálicas e conexão com a terra, com o barro e por suas ações mercuriais e personalidade enganadora, foi demonizado e equiparado ao Diabo. O mesmo ocorreu com a deidade romana Pã, tendo ele chifres e pés de bode, não podia ser equiparado a um Santo, tornando-se o protótipo do Diabo medieval. Assim, Exu quando chega ao Brasil já vem carregado desta mácula diabólioca que os cristãos lhe pintaram.

Todo processo de inculturação produz dois tipos de cidadãos: aqueles que aceitam a catequização e adotam as normas religiosas do novo culto e aqueles que se rebelam, defendendo suas crenças e raízes originais. Não seria diferente na África. Os kimbundo-bantus que se opuseram a catequização cristã assumiram eles mesmos serem adoradores do Diabo como uma afronta a presença dos brancos e a religião que veio com eles. Os rebeldes bantus eram compostos pelo povo baganda, balunda e baluba. O povo kimbundu-bantu que mais fez conquistas na região, incluindo Angola e depois quase todo o reino, foi o baganda. As revoltas eram apoiadas pelos feiticeiros e sacerdotes que lutavam por preservar sua cultura e estilo de vida. As cores que utilizavam nas bandeiras que carregavam para representar a sua causa, que acabou por se tornar as cores da bandeira de Angola, eram as preta e a vermelha, mais tarde associadas no Brasil ao Culto de Exu. Toda a herança dessa luta está preservada na Quimbanda Brasileira e constitui uma característica particular do culto: a luta adversávia, portanto, diabólica e satânica, contra a ortodoxia racista eurocentrista.

Para não perder o controle do seu reino, Afonso I decide romper com Portugal e com o cristianismo, voltando a assumir seu verdadeiro nome, Nzing Mvemba.

Desde a chegada de Diogo Cão no reino do Congo, o que Portugal verdadeiramente buscava era mão de obra barata através do comércio de escravos. Afonso I forneceu grande quantidade de escravos para Portugal. Todos os rebeldes aprisionados acabavam como escravos dos portugueses. No entanto, após o rompimento com o reino português os membros da corte de Nzing Mvemba começaram a ser caçados e vendidos como escravos. É a partir desse ponto, quando escravos africanos começaram a serem enviados ao Brasil, que começa o Culto de Exu em nossas terras. Entre os escravos que foram enviados ao Brasil haviam aqueles que na África aceitaram a catequização e o sincretismo entre os Santos e as forças da natureza, mas também aqueles que não aceitaram a catequização e religiosidade católica. Esses dois grupos formaram a gênese de dois tipos de tradições em nossas terras: os cultos afros sincretizados e os não sincretizados.

Trazidos ao Brasil, bantus e yorubás, revolucionários e catequizados, os escravos se uniram aqueles que aqui já estavam: os índios tupis-guaranis. Assim como os negros que chegavam, os índios também se dividiam entre aqueles que eram evangelizados e aqueles que não aceitavam a religião católica, pois eles passavam pelo mesmo processo de colonização e a partir dele a inculturação que os africanos passaram. Naturalmente os índios e negros evangelizados se juntaram por um lado e por outro, os índios e negros que não aceitavam o cristianismo. Essa é a verdadeira raiz das tradições de Umbanda e Quimbanda no Brasil. Os índios e negros evangelizados unidos formaram a gênese da ancestralidade de Umbanda em um primeiro momento, o culto dos caboclos e preto-velhos catequizados; os índios e negros avessos ao cristianismo formando a gênese da ancestralidade da Quimbanda, caboclos e preto-velhos que não queriam viver sob a égide dos brancos, dos santos católicos e que eram aliados do Diabo, o adversário ontológico deles. Ao chegarem no Brasil, os africanos miscigenaram sua cultura espiritual com a dos índios, quando os nkisis (e Orixás yorubás) cruzaram linha com os encantados dos pajés tupis-guaranis. Embora de natureza distintas, as culturas tupi-guarani, yorubá e kimbundo-bantu compartilhavam de muitas semelhanças e não havia diferença entre o feiticeiro africano e o feiticeiro ameríndio, ambos xamãs em suas culturas particulares.

Nesse primeiro momento do Culto de Exu no Brasil também foi presente a influência da feitiçaria ibérico-cipriânica que muito contribui com a gênese da Quimbanda. Durante o Séc. XVI o Santo Ofício de Portugal exilou no Brasil inúmeras feiticeiras condenadas pela Inquisição. Na Europa, os tribunais do Santo Ofício de Portugal foram os que menos perseguiram as feiticeiras, pois eles estavam mais interessados em perseguir as heresias dos judeus e dos africanos. Por conta disso as feiticeiras ibéricas puderam encontrar em Portugal refúgio para suas práticas. Em outras partes da Europa a perseguição às feiticeiras era mais intensa. Assim Portugal se tornou um refúgio para feiticeiras de toda parte do Mundo Velho. No entanto, quando julgadas em Portugal, um grande contingente de feiticeiras foi enviado ao Brasil como punição por suas heresias, afinal, a Inquisição portuguesa não encontrava relatos de pactos com o Diabo ou mesmo da celebração do Sabbath entre elas. Ao invés disso, encontrava relatos de feitiços simples praticados por essas feiticeiras, o que diminuiu drasticamente a chance de serem queimadas; mas ainda sim, condenadas e exiladas. Com elas veio ao Brasil a feitiçaria ibérica tradicional e Culto ao Diabo, que incluía a tradição salomônica e dos grimórios em uma linguagem popular, disseminada através das inúmeras edições de O Livro de São Cipriano. A Quimbanda herdou toda essa influência da feitiçaria ibérico-cipriânica. Nesse caminho é possível ver com clareza sua gênese neste primeiro momento formada a partir das culturas mágicas dos índios (xamanismo tupi-guarani do culto aos encantados), dos kimbundus (xamanismo bantu do culto aos nkisis e ngangas), dos yorubás (xamanismo imalé do culto aos Orixás) e feitiçaria ibérico-cipriânica (tradição salomônica e dos grimórios e a demonologia europeia), dando nascimento a uma síntese de feitiçaria brasileira necromântica de culto aos ancestrais.

Deve ser entendido que este [O Livro de São Cipriano], diferente de outros grimórios, não é uma relíquia de um distante passado mágico, ele não é um livro antigo e morto que espera para ver a luz novamente através de um devotado magista. O Livro de São Cipriano não se trata de um livro; ele não está localizado no tempo ou no espaço. Como qualquer culto, ordem ou religião viva e ativa, trata-se de um contínuo, uma corrente. Ele muda seu conteúdo porque está vivo, porque é praticado e vivido em vários contextos culturais, sociais e geográficos [...] [e] ele constantemente responde as necessidades de seus leitores. Da costa da Catalunha a Algarve, da Ibéria rural ao nordeste do Brasil, dos terreiros de Quimbanda e finalmente até as cidades, ele é em todo o sentido do termo um livro de magia popular, um livro [de magia] para o povo. [...] Ele vive a margem da sociedade, nas sombras, no limiar entre religiosidade e heresia, virtude e vício. Como o próprio Santo, ele vive naquela linha onde Deus e o Diabo se encontram. [...] Mas como um contínuo, um ponto parece ser constante em suas edições, todas trazem a narrativa faustina.

[...] Este terceiro período [da tradição cipriânica] não pode ser separado da efervescência mágico-religiosa da atmosfera Sul-americana. Foi ali, num grande cadinho cultural de sangue branco, negro e nativo-americano que as práticas da magia cipriânica foram revitalizadas e desenvolvidas para além dos princípios da prática ibérica, afastando-se dos livros originais. Essa nova e impressionante onda de práticas parece estar fazendo seu caminho de retorno a Ibéria e Europa, seja através da imigração ou pelo incrível prestígio e reconhecimento das técnicas mágico-religiosas Sul-americanas, colorindo e revitalizando antigos cultos cipriânicos. Em teoria, devido a seu caráter altamente pragmático, estas novas práticas revitalizadas poderão no futuro uma vez mais cristalizar uma nova ortodoxia cipriânica. Contudo, devido à possibilidade de se estabelecer contato mediúnico com São Cipriano, um constante fluxo de material novo e atualizado é estabelecido, fazendo dele uma corrente viva, como uma vez o foi em um distante passado da Ibéria.

José Leitão, The Book of St. Cyprian: the Sorcerer’s Treasure. Hadean Press, 2014.

Na citação acima é possível inferir a profunda influência que a magia cipriânica teve na gênese da feitiçaria tradicional brasileira. O Livro de São Cipriano trouxe consigo, por meio das feiticeiras exiladas, uma corrente mágica viva que alimentou os alicerces da prática de feitiçaria no Brasil. Qualquer um que negue ou feche os olhos para isso tem um profundo desconhecimento da história e fundação do Culto de Exu no Brasil.

Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de São Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do São Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o São Cipriano, à luz dos candeeiros.

João do Rio, As Religiões do Rio, 1904.

A influência da necromancia ibérica transmitida pelos inúmeros feitiços que compõem as edições de O Livro de São Cipriano tem sido desconsiderada, muitas vezes negada, por falta de conhecimento histórico acerca das raízes e influências que formaram o Culto de Exu no Brasil.

O Livro de São Cipriano é uma coletânea de feitiços populares de toda parte da Europa cuja idade se estende até a Antiguidade. Ao nos debruçarmos sobre esses feitiços antigos inferimos com clareza os conceitos e ideias necromânticas da feitiçaria ibérica trazidas ao Brasil e que influenciaram profundamente a formação da tradição da Quimbanda. A necromancia de O Livro de São Cipriano é católica, no entanto, sua visão acerca dos mortos remonta a Era Clássica. A escatologia cristã modificou drasticamente a interação dos vivos com os mortos. Na Era Clássica acreditava-se que os mortos podiam interagir e interferir na vida dos vivos. Para os magos e feiticeiros deste período na história isso era muito bom, pois eles podiam conjurar os mortos e solicitar sua intervenção nos diversos assuntos seculares dos homens. A interação com os mortos ficava a cargo de pessoas preparadas, sacerdotes especializados na Arte Negra da necromancia. Essa arte era chamada de goēteia e tratava-se apenas do conhecimento e conversação com os espíritos dos mortos.

As condições de vida, a experiência existencial e as circunstâncias da morte definiam o tipo ou qualidade do morto. Dois tipos de mortos, grosso modo, travavam contato com os humanos: os heróis e os mortos sem descanso. Na tradição da Quimbanda eles são equivalentes aos Exus/Pombagiras e os Eguns. Os Exus e Pombagiras são equivalentes aos Heróis cultuados na Grécia Antiga; os mortos sem descanso são os Eguns. E da mesma maneira que existiam classes distintas de mortos sem descanso, também há classes distintas de Eguns: sofredores, obsessores, revoltados etc. O homem da Antiguidade tinha profunda preocupação com grandes feitos, conquistas, vitórias e uma morte honrosa, que incluía morte em batalha e morte de velhice, cumprindo o destino do corpo. Morrer antes da hora, solteiro ou por assassinato ou acidente violento eram eventos evitados a todo custo, pois da vida e da morte dependiam o destino da alma. Com advento do cristianismo essas ideias foram suprimidas e substituídas por outras, por exemplo, jovens mortos antes do tempo ingressavam diretamente no Reino dos Céus. Os mortos sem descanso conjurados pelos magos e feiticeiros para intervirem nos assuntos dos homens, no cristianismo, foram identificados como o próprio demônio se passando por deuses e espíritos dos mortos. O culto aos santos e mártires foi a revisão de uma prática necromântica pagã muito mais antiga.

Embora a necromancia de O Livro de São Cipriano seja baseada na escatologia católica, ela se distancia completamente de sua visão, pois na magia cipriânica as almas condenadas ao Purgatório podem ser convocadas para interferirem nos assuntos dos homens; almas dos mortos fora do Purgatório também podem ser convocadas para os mesmos fins; uma classe distinta, os maus espíritos batizados, que na Quimbanda identificamos como Quiumbas, também podem ser convocados para fins de magia. Estes maus espíritos batizados agem em conluio com os demônios excomungados. Notamos na demonologia cipriânica um resgate das ideias necromânticas gregas da Antiguidade e que se estenderam até a tradição da Quimbanda. As almas condenadas ao Purgatório são os antigos mortos sem descanso; as almas fora do Purgatório são os espíritos superiores ou os heróis cultuados pelos teurgos; os maus espíritos batizados são almas que foram condenados a vagar como fantasmas, vampirizando e prejudicando os vivos. Na demonologia cipriânica Lúcifer aparece como soberano aos mortos e aos demônios do Inferno, prefigurando sua posição na tradição da Quimbanda como Maioral. Nos feitiços cipriânicos de O Livro de São Cipriano é apresentada a associação de Maria de Padilha com Lúcifer, o que se perpetuou na Quimbanda. Então embora a cosmovisão apresentada em O Livro de São Cipriano seja católica, sua feitiçaria se baseia nos antigos arcanos da magia, um período muito anterior a eclosão do cristianismo e que foram transportados aos Reinos da Quimbanda por herança ibérico-magística. A estrutura hierárquica da demonologia ibérica (e europeia em um contexto mais amplo) influenciou profundamente a formação da hierarquia dos Exus e Pombagiras nos Reinos da Quimbanda. A ideia de mortos assumindo posições importantes na hierarquia infernal e a ideia de que mortos e demônios podem se associar para influenciar a vida humana também teve reflexos diretos na formação da prática de magia na Quimbanda.

Na Era Clássica o culto aos mortos era feito nos cemitérios, pois acreditava-se que os mortos permaneciam ao redor de suas tumbas. Os cemitérios eram zonas de poder onde os mortos poderiam ser mais facilmente convocados e conjurados. O Livro de São Cipriano convoca esse conceito em muitos de seus feitiços. Isso, no entanto, não estava muito longe da escatologia católica, que estabelecia a veneração de relíquias dos santos em santuários e túmulos como uma prática que substituía a antiga e pagã adoração de mortos nos cemitérios. Trata-se uma fórmula geral na necromancia que o túmulo atue como um portal por onde os vivos podem se comunicar com os mortos.

Na Era Clássica os mortos sem descanso eram espíritos sofredores que padeciam em desgraça por castigo a uma vida desregrada e miserável. O túmulo, portanto, tratava-se de um cárcere de padecimento e sofrimento. Para um espírito nessas condições, ser conjurado a trabalhar para um feiticeiro significava melhorar de condição espiritual, pois o espírito sofredor seria poupado do castigo do submundo ou deixaria de vagar como um errante; passando a trabalhar diretamente para o feiticeiro, o espírito sofredor seria acolhido em uma família ou egrégora pessoal e, com o tempo, poderia melhorar ainda mais a sua condição espiritual. Esse arcano antigo da magia é encontrado nas tradições de Quimbanda onde Eguns sofredores podem ser arrebanhados para trabalhar com os Exus e Pombagiras.

A influência cipriânica na tradição de Quimbanda é mais profunda ainda. O mito de Cipriano construído ao longo dos séculos da Antiguidade aos dias de hoje reflete a busca genuína de progressão espiritual de um feiticeiro-kimbanda. Ao cavarmos os escombros da tradição da magia podemos perceber que desde a Antiguidade, conforme encontramos na magia greco-egípcia dos papiros, havia um processo natural e gradual pelo qual alguém se tornava um feiticeiro.

Convém que o iniciado passe por todas as fases, que são: desejo, perseverança e domínio. A primeira pertence ao noviço, ou seja, o desejo de aprender. A segunda, ao iniciado, que precisa de perseverança para chegar ao fim. A terceira, ao mestre, que é o verdadeiro mago, pois atingiu o domínio absoluto da Arte.

São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.

Este caminho gradual de iniciação magística trata-se de uma longa jornada de busca vivenciada em etapas que podem ser universalmente estabelecidas mais ou menos assim:

  1. Uma longa jornada de aprendizado e treinamento espiritual em várias tecnologias mágicas oferecidas por tradições diversas da magia. O estudante empreende uma busca por ordens mágicas distintas, tradições de magia e cultos de mistérios, até que esteja pronto para encontrar um mestre que o adestre e o treine na Arte dos Sábios.

  2. Após encontrar um mestre e aprender com ele durante um tempo, se ganha à revelação de um segredo da magia: uma conjuração ou técnica poderosa capaz de fazer o estudante entrar em contato com seu espírito tutelar.

  3. O Conhecimento & Conversação com o espírito tutelar através de uma conjuração mágica, completada por um acordo com ele na forma de um pacto, voto, aliança ou juramento. Essa conjuração geralmente inclui sacrifícios e oferendas.

  4. Através do conhecimento e conversação com espírito tutelar, obter dele sabedoria mágica genuína e fidedigna; bem como compartilhar dos seus poderes para auxiliar espiritualmente e magicamente pessoas que necessitem de seus serviços.

A imagem tradicional do feiticeiro ou xamã na tradição ocidental de mistérios é aquela de um homem que, após um treinamento e preparo, contatou um espírito tutelar e depois disso começou a oferecer seus serviços espirituais e mágicos. Ele tornou-se um feiticeiro profissional, se podemos usar essa terminação. A tradição de Quimbanda é uma herdeira direta dessa tradição de mistérios, formada a partir de uma confluência de correntes filosóficas. Em sua jornada espiritual, da iniciação ao mestrado, este é o caminho percorrido por um feiticeiro-kimbanda.

Cipriano deveria, em princípio, ser entendido como um guia para aquela experiência maravilhosa quando o feiticeiro finalmente alcança o conhecimento e conversação com seu espírito patrono.

Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2018.

Se Cipriano espelha a busca genuína de progressão espiritual de um feiticeiro-kimbanda, o eixo dessa busca é o conhecimento e conversação com o espírito tutelar, a entidade-guia por trás dos conhecimentos ocultos de feitiçaria e a fonte de poder do feiticeiro. No mito de Cipriano seu espírito tutelar era o próprio Diabo, que prometeu fazer dele um príncipe após a morte, quer dizer, uma alma deificada, além de lhe prover poder e ajuda enquanto vivo. Isso está em sincronia perfeita com a relação que um feiticeiro-kimbanda tem com seu Exu Pessoal. Na tradição de Quimbanda o Exu Pessoal de cada feiticeiro está encarregado de lhe prover todo tipo de auxílio, seja para questões seculares ou espirituais, além de lhe ajudar diretamente na deificação de sua alma, orientando-lhe na posição de guia e mestre espiritual.

Nos Papiros Mágicos Gregos o espírito tutelar (paredros) é apresentado como o supremo segredo mágico, pois ele permite ao mago realizar proezas com a magia. Não só os papiros, mas muitos autores cristãos apresentavam o assistente mágico como a verdadeira fonte por trás dos poderes do feiticeiro. Na recessão escatológica cristã, o espírito tutelar tornou-se o diabo pessoal que acompanhava os feiticeiros, como nas lendas de Cipriano, que aprendeu magia diretamente com o Diabo, e Fausto, que era orientado por um diabo pessoal, Mefistófeles. Simão, o famoso mago de O Ato dos Apóstolos, comparado a Salomão e realizador de proezas (taumaturgia), também foi apresentado sendo acompanhado por um espírito tutelar, a fonte de seus poderes. Essa ideia do assistente mágico foi transportada ao neoplatonismo teúrgico de Jâmblico na doutrina do daimon pessoal. Os cosmocratores do reino da geração, na condição de senhores de todos os daimones que se encontram na geração, podem revelar ao teurgo seu daimon pessoal. Posteriormente, na magia sagrada de Abramelin, o daimon pessoal da teurgia neoplatônica, o antigo paredros dos papiros gregos, aparece como o Sagrado Anjo Guardião, que deve ser convocado pelo mago e revelado por Deus caso ele tenha merecimento, ganhando assim, com a autoridade espiritual do Sagrado Anjo Guardião, o domínio e a regência sobre os demônios (daimones) do reino da geração.

Na teurgia de Jâmblico, após o contato com o seu daimon pessoal, o teurgo aprenderia com ele a forma correta de prestar-lhe reverência cerimonial, a maneira particular de invocá-lo. Nos Papiros Mágicos Gregos, o paredros é descrito como uma poderosa criatura espiritual capaz de dotar o feiticeiro com muitos poderes e de lhe ensinar um tipo peculiar e pessoal de sabedoria oculta, revelando também a natureza soteriológica do espírito tutelar: Quando você estiver morto, ele irá envolver o seu corpo como é adequado a um deus, e ele levará seu espírito pelo ar com ele. Pois, nenhum espírito aéreo que está unido a um poderoso assistente irá para o Hades, pois para ele todas as coisas são submetidas. É interessante notar essa passagem dos papiros gregos com a promessa feita pelo Diabo a Cipriano: Ele prometeu me fazer um príncipe, depois de minha morte, e que eu teria poder e seu favor enquanto vivo. Para compreender essas passagens e relacioná-las, leve em consideração as crenças escatológicas das culturas do Mediterrâneo pré-cristão: ser condenado a uma vida no Hades (submundo) após a morte era um destino que ninguém gostaria de ter. Na mitologia grega e suas recessões escatológicas anteriores, inúmeros deuses intervinham livrando as almas do Hades e transformando-as em criaturas daimônicas após a morte. Note que nos papiros gregos o paredros é apresentado como uma deidade ou criatura espiritual deificada: ele é um deus [...] um espírito aéreo que você viu. Na tradição do xamanismo paleolítico, muitos xamãs eram enterrados de maneira distinta, separados em locais ou zonas de poder especiais para que suas almas após a morte pudessem integrar os espíritos ancestrais. E é interessante notar que Fausto, no curso de realização de um pacto com seu diabo pessoal, Mefistófeles, não tinha outro desejo além de tornar-se um diabo após a morte. Soldo: fazia parte da tradição da feitiçaria na Antiguidade o feiticeiro querer tornar-se um espírito ancestral deificado; essa era a expectativa do feiticeiro dos Papiros Mágicos Gregos e permanece presente até hoje em tradições da feitiçaria como a Quimbanda, cuja expectativa de um sacerdote e feiticeiro é tornar-se um Exu após a morte, permanecendo na família de espíritos que assistem sua Casa. Abundam inúmeros feitiços da tradição popular da feitiçaria a convocação de espíritos de mortos que se acredita terem sido magos e bruxas associados ao Diabo, como é o caso de Maria de Padilha, que sempre se apresenta no comando de uma grande Legião de espíritos, sua quadrilha mágica.

A danação no inferno, uma acusação genuinamente cristã, mas baseada em fontes mais antigas, nada mais é do que a saída que a Igreja encontrou para facilitar o acesso ao céu através de Jesus Cristo, associando os feiticeiros ao contato com o Diabo e uma vida cativa no inferno após a morte. Devemos levar em consideração que essa doutrina de deificação mágica da alma após a morte era deveras perigosa a Igreja. No entanto, trata-se do verdadeiro arcano de mistério velado pela acusação de danação no inferno; na verdade esse sempre foi o anseio mágico e iniciático dos feiticeiros do passado, tornarem-se almas deificadas que pudessem assistir os humanos em suas muitas demandas. Essa ideia é a gênese da doutrina da iluminação ou a realização da grande obra nas escolas modernas e pós-modernas da tradição da magia.

O desejo de Fausto em tornar-se um diabo após a morte; o desejo de Cipriano em tornar-se um príncipe com poder e autoridade após a morte; o desejo de um sacerdote de Quimbanda em tornar-se um Exu após a morte; o desejo do feiticeiro dos papiros em tornar-se uma alma deificada após a morte; o desejo do teurgo que seu daimon pessoal lhe auxilie a tornar-se uma alma purificada etc. são versões distintas da doutrina soteriológica da deificação da alma associada ao espírito tutelar, uma criatura espiritual capaz de livrar o homem do cativeiro do submundo (ou inferno) e torná-lo uma alma deificada ou espírito ancestral, podendo ser convocado e auxiliar outros feiticeiros enquanto vivos.

Para os cristãos, quem poderia ensinar esse tipo de proeza mágica aos feiticeiros? O próprio Diabo! Assim, o espírito tutelar dos papiros, o daimon pessoal da teurgia de Jâmblico, o Sagrado Anjo Guardião de Abramelin, o sátiro de Aleister Crowley ou o deus oculto  de Kenneth Grant (1921-2011) são, em verdade, o Diabo que ensinou feitiçaria a Cipriano, o Mefistófeles de Fausto, seu diabo pessoal, ou o espírito por trás dos poderes de Simão, o Mago que, no Tarot, foi representado como o Atu XV, O Diabo. Não importa o nome dado ao espírito tutelar em qualquer de suas recessões escatológicas; o fato que permanece é este: a expectativa do mago desde a Antiguidade era dedicar-se durante anos estudando a Arte dos Sábios até que pudesse, através do amadurecimento do seu conhecimento, obter a ajuda de um espírito tutelar ou patrono mágico que lhe desse poder e autoridade espirituais. A lenda de Cipriano é ótima aos estudantes porque ela espelha essa busca.

Em uma das versões populares de O Tesouro do Feiticeiro de São Cipriano, encontramos a história de um camponês chamado Victor Siderol, que teria encontrado uma cópia de O Livro de São Cipriano e através dele fez um pacto com o Rei do Inferno através do sacrifício de uma galinha preta em um círculo no meio de uma encruzilhada. O próprio Diabo tornou-se o espírito tutelar de Victor Siderol, ensinando-lhe muitos segredos, revelando-lhe um tesouro enterrado e a felicidade através de um relacionamento amoroso sadio. Embora sua busca se limitasse a posse de um tesouro, qualquer um diria que ele estava sendo guiado pelo seu espírito tutelar. E estava mesmo, mas velado na imagem de um diabo pessoal.

Uma versão espanhola de O Livro de São Cipriano traz a história de um monge alemão chamado Jonas Sufurino. Diferente de Victor Siderol que buscava apenas encontrar tesouros e a felicidade através deles, Jonas Sufurino buscava encontrar a sabedoria oculta da tradição mágica e ele conquistou a meta fundamental da magia: desenvolver-se ao ponto de receber a sabedoria oculta através de uma transmissão de fonte não humana. E é interessante comparar uma das últimas alegações de Aleister Crowley (1875-1947) sobre criaturas espirituais com o relato de Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano:

Minhas observações sobre o Universo convencem-me que existem Seres de inteligência e poder de uma qualidade muito superior do que qualquer coisa que nós possamos conceber como humano; eles não são necessariamente baseados nas estruturas nervosas e cerebrais que nós conhecemos; a única chance para a humanidade avançar como um todo é fazer com que individualmente cada humano entre em contato com estes Seres.

Aleister Crowley, Magick Whitout Tears.

Havia ali inúmeros volumes que tratavam das Artes Mágicas. A simples leitura de alguns deles me convenceu de que ali estava o que eu procurava. Eu refletia: não há dúvida de que existem os espíritos bons e maus, e que eles se relacionam com os homens; não há dúvida de que os ditos espíritos estão dotados de uma inteligência superior, posto que a própria religião lhes dá o poder de nos tentar, de nos induzir ao bem ou ao mal; logo, se pelo poder da magia pode pôr-se o homem em diálogo com os espíritos, esse homem logrará alcançar a suprema sabedoria.

São Cipriano, El Libro de Sn Cipriano, versão espanhola de Jonas Sufurino.

Como na história do camponês Virtor Siderol, o monge Jonas Sufurino também fez um pacto com o Rei do Inferno:

Se é verdade que você existe, eu gritei com voz alta, ó poderoso Gênio do Inferno, apresenta-se à minha vista! E neste exato momento, durante um relâmpago formidável, apareceu o espírito infernal que eu invocara. O que você quer de mim? Eu quero, respondi, desenvolver uma relação com você. Ele respondeu: Concedido! Volte para sua cela. Lá você me terá sempre que quiser; eu revelarei a você todos os segredos, deste e dos outros mundos. Eu te darei um livro que será para ti como um catecismo da sabedoria oculta, um catecismo que só os iniciados podem entender.

São Cipriano, El Libro de Sn Cipriano, versão espanhola de Jonas Sufurino.

O livro citado nesta passagem é O Tesouro do Feiticeiro, um grimório oferecido a Lúcifer por Cipriano, que declara: Este livro me mostrou a verdadeira sabedoria, alcançando com seu estudo o domínio completo sobre toda criação. Essa passagem demonstra claramente como o espírito tutelar, aqui como um diabo pessoal, é a fonte de revelação não humana que transmite a sabedoria oculta da magia ao feiticeiro, construindo com essa sabedoria transmitida um grimório particular de feitiçaria.

Na tradição de Quimbanda o diabo pessoal é o Exu que caminha com cada adepto do culto, orientando e vivificando sua magia. O Rei do Inferno é o próprio Diabo no mito cipriânico; na tradição de Quimbanda ele nomeado de Maioral, Chefe Império de todas as Legiões de Exus e Pombagiras. E é interessante notar que em sua daimonologia, Cipriano atribui a Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth toda autoridade hierárquica do mundo infernal. No segundo momento do Culto de Exu no Brasil, Aluizio Fontenelle identifica estes mesmo arquidemônios como a Trindade do Oposto e os Três Maiorais de Quimbanda. Assim, diferente do que postulam muitos autores, a influência satânica e luciferiana na Quimbanda não é moderna. Desde sua gênese no primeiro momento a Quimbanda herda tanto da feitiçaria ibérica cipriânica quanto dos escravos bantus revolucionários no Brasil a ideia de um culto baseado nos princípios do adversário do Deus dos cristãos brancos eurocentristas, o Diabo.

A Entidade Máxima denomina-se «Maioral», tendo ainda outros denominativos, tais como: Lúcifer, Diabo, Satanás, Capeta, tinhoso, sendo [...] mais conhecido com o nome de «Exu Rei». [...] Sua Majestade «Lúcifer» ou Exu-Rei, é o dono e Senhor das Trevas. Considerado por sua Falange como o «Absoluto», é quem domina o Reino da Terra. [...] É quem determina e comanda todos os atos inerentes ao «Povo de Exu». É a entidade máxima do mal, a quem são prestadas todas as honrarias de uma verdadeira majestade.

Aluizio Fontenelle, Exu. Parzifal Publicações, 2018.

Em todas as vertentes religiosas, existe a concepção de um Ser Supremo, algo que está além de compreensões exotéricas e banalizadas. Tal ser é chamado de Maioral [na Quimbanda]. [...]. A Quimbanda Brasileira foi o fruto da junção de três vertentes principais: Africana, Europeia, Indígena Nativa e, tais pilares construtivos encontraram similaridades que possibilitaram a junção e criação de novos seres. [...] A formação do conceito Maioral deu-se pelo sincretismo ocorrido entre os «Exus-Eguns» e os demônios listados como subalternos dos Maiorais do Inferno. [...] Maioral aparece como um termo usado para designar Seres Espirituais que regem as Legiões de Exus e Pombagiras. Dentro do processo de cristianização de Oxalá e os demais orixás africanos, a dualidade existente no cristianismo, entendida como o «Bem e o Mal» fez com que Exu assumisse o «Trono das Trevas» e fosse correlacionado à tríade maligna descrita nos antigos Grimórios composta por Lúcifer, Beelzebuth e Astaroth. O primeiro passo desse sincretismo umbandista foi classificar três Exus que assumiram os «Tronos Maiorais». Lúcifer foi correlacionado a «Exu Lúcifer», Beelzebuth (Beelzebub) com «Exu Mor» e Astaroth (Ashtaroth) com «Exu das Sete Encruzilhadas». A partir dessa tríade os Exus foram classificados e renomeados segundo a demonologia dos antigos Grimórios.

Danilo Coppini, Quimbanda: O Culto da Chama Vermelha e Preta. Via Sestra, 2019.

O Diabo sempre esteve acompanhando minha iniciação e nos três ciclos que me envolvi com São Cipriano ele me trouxe novamente ao Diabo, como se eu me desviasse do caminho. Em nosso último encontro ele me trouxe até o Chefe Império V.S. Maioral e sua Legião de Mestres Exus e Pombagiras.

Fernando de Ligório, Eu Sou Filho do Diabo, artigo disponível no Blog do site Filosofia Oculta.

Este «Diabo» é chamado Satã ou Shaitan, e considerado com horror pelas pessoas que ignoram sua Fórmula imaginando-a como maligna, acusam a natureza de seu próprio crime imaginário. Satã é Saturno, Set, Abrasax, Adad, Adônis, Átis, Adão, Adonai, etc.

Aleister Crowley, Magia em Teoria & Prática, tradução de Marcelo Ramos Motta.

[...] Foram muitos os anos antes que Crowley reconhecesse Aiwass como um ser idêntico a seu Daimon, seu Gênio ou Sagrado Anjo Guardião. Aiwass, o «ministro de Hoor-paar-Kraat», portanto equipara-se com o «Lúcifer solar-fálico-hermético; o Demônio, Satã [...]. Esta serpente, Satã, não é inimiga do Homem, Ela quem fez os Deuses de nossa raça, conhecendo o Bem e o Mal; Ela declarou «Conhece-te a ti Mesmo!» e ensinou a Iniciação.» Crowley tipifica a Verdadeira Natureza em todo homem e mulher, a Verdadeira Vontade, por um Sátiro, uma forma de Sat-An.

Kenneth Grant, Aleister Crowley & o Deus Oculto, tradução pessoal.

Virar as costas ao Diabo pode ser algo enganoso para os feiticeiros tradicionais. Quando agimos assim, corremos o risco de distorcer a história da feitiçaria como se desenvolveu no mundo ocidental e perder o que ela ainda tem a nos revelar. [...] Ao rejeitar o que o Diabo abrange ou representa, condenamos aquilo que significa ser completamente humano – uma criatura da terra, incluindo a selvageria e a carnalidade da natureza. Essa rejeição faz brotar em nós a visão romântica e perigosa de que a natureza é uma força benevolente que cuida de nossos melhores interesses. Na realidade, a natureza não é nossa protetora e nem nossa amiga. Jamais devemos nos esquecer disso. A natureza é vermelha nos dentes e nas garras. [...] A natureza é um monstro e, ao mesmo tempo, bela e deslumbrante. Ela tem dentes e morde com firmeza aqueles que tentam torna-la cor-de-rosa e delicada. [...] A natureza requer nossa vigilância, a criação de um elo profundo entre o animal e o humano. [...] Como uma representação da selvageria da natureza, o Diabo reflete nosso lugar nessa complexidade – o humano unido ao animal. [...] Aceitamos o Diabo como um símbolo de humanidade, uma criatura da terra. [...] Em nossa arte invocamos o Diabo como o Senhor das Feiticeiras, o Senhor dos Caminhos e Unificador de Mundos. Ele é a incorporação da própria natureza. Une os mundos interior e exterior. Acima e abaixo. Como a imagem icônica de Baphomet, [...] nem bom e nem mau, uma parte integral do fluxo e refluxo da existência.

Christopher Orapello e Tara-Love Maguire, Besom, Stang & Sword: a Guide to Traditional Witchcraft, the Six-Fold Path & the Hidden Landscape. Weiser Books, 2018.

As feiticeiras da Europa e os xamãs da África adotaram a iconografia diabólica como uma postura cultural adversária da ortodoxia cristã. É por isso que é correto dizer, seguindo essa ideia, que a tradição de Quimbanda é o culto brasileiro ao Diabo. Isso só se solidificou completamente no segundo momento do Culto de Exu no Brasil a partir das ideias de Aluízio Fontenelle. O nome de Maioral já era atribuído ao Diabo pelos inquisidores do Santo Ofício de Portugal no Séc. XVI. Maioral não chegou na Quimbanda no segundo momento do Culto de Exu; ele chegou antes, com a feiticeiras e O Livro de São Cipriano.

Da feitiçaria portuguesa também vieram noções de uma hierarquia infernal. Já no processo de Inquisição em Lisboa em 1559 nós encontramos o título de Maioral dado ao Diabo como cabeça [chefe] dos cultos e do inferno.

Humberto Maggi & Verônica Rivas, Maria de Padilha: Queen of the Sols. Hadean Press, 2015.

A comida [ela] diz e confessa, fedia a enxofre e breu; e, sobre a mesa, iluminavam-se algumas tochas com cabos de corda encharcados, que davam uma iluminação escura, sombria e fedorenta. E sentado na cabeceira da mesa estava Maioral em seu trono com encosto negro, com um pano longo como um capuz enrolado e, algumas vezes, ele tinha [o cabelo] cortado e uma barba muito longa.

Yvonne Cunha Rêgo, Feiticeiro, profetas e visionários. Citado em Maria de Padilha: Queen of the Sols, Humberto Maggi & Verônica Rivas, Hadean Press, 2015.

Tendo discutido em linhas gerais as correntes mágicas que alicerçam e dão sentido a tradição de Quimbanda, a feitiçaria tradicional brasileira no seu primeiro momento, nele ainda seguimos com o desenvolvimento dos primeiros grupos organizados que começaram a colocar em prática os frutos dessa intensa miscigenação mágico-cultural: os calundus e candomblés baianos, o batuque gaucho, a cabula capixaba e a macumba carioca, essa última sendo o suco concentrado de toda essa herança e influência espiritual das matrizes que formaram o Culto de Exu no Brasil. É da macumba carioca que a Umbanda e a Quimbanda tiraram o sumo concentrado para realização de seus trabalhos. Esses primeiros cultos brasileiros de cabala crioula são os frutos diretos das primeiras tentativas de organização cultural e reidentificação negra através do trabalho espiritual místico e mágico.

CALUNDU, CANDOMBLÉ,BATUQUE,

CABULA & MACUMBA

A escravidão doméstica ou de linhagem (parentesco) era uma prática largamente conhecida entre os africanos antes da chegada dos portugueses que entre 1415 e 1510 criaram diversas sucursais comerciais na África se valendo de mão de obra escrava autorizada e incentivada pela Igreja Católica. Foi somente com os portugueses que se iniciou um processo de escravatura com objetivos puramente comerciais. Na escravidão doméstica africana, os escravos mantinham sua identidade cultural; na escravidão comercial portuguesa que se estendeu ao Brasil, a individualidade dos escravos era violada, fazendo-os perder sua origem e identidade cultural. Os próprios africanos ajudaram os portugueses a escravizar seus irmãos, mas eles assim o fizeram para não serem eles mesmos escravizados. Os africanos foram obrigados a ajudar os portugueses, mas no fim, até aqueles que os ajudavam foram escravizados também.

Estima-se que pelo menos seis milhões de africanos foram capturados e enviados as Américas, dos quais quatro milhões aportaram em terras brasileiras. Os escravos eram separados de suas famílias na intenção de reprimir sua reorganização social e evitar revoltas. A cultura de uma nação, povo ou tribo está invariavelmente conectada a sua religião. Se impedidos de se reorganizarem socialmente por conta do apartheid sanguíneo, os escravos de diversas partes da África se reidentificaram por conta das condições precárias em que viviam cativos, pela cor negra da pele, e fundamentalmente pela prática religiosa que, mesmo distinta etnicamente, continha dois elementos centrais essenciais: i. o culto aos ancestrais divinizados e; ii. o culto as forças da natureza.

Outro fator importante que auxiliou a reidentificação dos escravos foram às irmandades e confrarias católicas que prestavam serviços assistenciais essenciais e cujo objetivo era a doutrinação e catequização deles. Essas irmandades e confrarias católicas por meio da catequização dos escravos procurava demolir o último traço de identidade cultural que os eles ainda possuíam, perseguindo e denegrindo seus cultos religiosos de origem associando-os ao Diabo ou, na melhor das hipóteses, tolas supertições. Eles buscavam desenraizar os escravos para então resocializá-los dentro dos padrões culturais vigentes. Mas o tiro saiu pela culatra e os escravos deram continuidade a sua religiosidade dentro de um processo de profundo sincretismo espiritual.

[...] Os nagôs de Keto que fundaram o Candomblé da Barroquinha pertenciam à irmandade local. O terreiro teria sido assentado em um terreno arborizado, situado logo atrás da igreja e arrendado em data desconhecida. Em um primeiro momento, o culto teria funcionado na casa de uma mãe-de-santo africana residente nas imediações da Ladeira do Berquó e da Rua do Curriachito, que contornavam a igreja pelo lado norte e pelos fundos.

Eugênio R.W., A Benção aos mais Velhos: Poder e Senioridade nos Terreiros de Candomblé. Arole Cultural, 2017.

De todo esse processo que ocorreu nas Américas nasceram os primeiros cultos que tentavam reorganizar o chão africano em seus contextos culturais e geográficos: o Vodu haitiano, a Santeria cubana-caribenha, o Palo dominicano e porto-riquenho e o Calundu brasileiro. Essa reorganização socio-cultural religiosa possibilitou aos escravos refazerem simbolicamente seus laços de parentesco sanguíneo; além disso, os escravos tiveram a chance de se sentirem novamente cidadãos e de se reidentificarem como raça. É desse duro processo que nasceram os Calundus e Candomblés baianos, o Nagô pernambucano, o Tambor de Mina do maranhense, a Cabula capixaba, a Macumba carioca, o Batuque gaúcho, o Catimbó nordestino e, finalmente, a Umbanda e a Quimbanda modernas.

[...] Ao reconstruir a família, completamente esfacelada pelo processo de escravidão, o Candomblé empresta a africanos e seus descendentes a possibilidade de refazer simbolicamente os laços de parentesco. [...] Os negros encontraram no Candomblé a chance de sobreviver como cidadãos e como raça.

Renato da Silveira, O Candomblé da Barroquinha: Processo de Constituição do primeiro Terreiro Baiano de Ketu. Maianga Edições, 2010.

A partir de 1760 iniciou-se uma prática de maior tolerância com a expressão espiritual dos escravos por parte do Império português. Essa tolerância permitiu, por sua vez, a eclosão de grupos que se denominavam calundus, palavra kimbundo-bantu que significa espírito de elevada hierarquia espiritual. Esses espíritos referidos pela palavra calundu se tratavam de almas de mortos que viveram séculos antes. São nos Calundus baianos do Séc. XVI, portanto, que encontramos a gênese do culto as almas divinizadas como conhecemos na Quimbanda moderna. Renato da Silveira em sua obra O Candomblé da Barroquinha: Processo de Constituição do primeiro Terreiro Baiano de Ketu, cita os encontros dos Calundus:

1701: O rito começou com toques de atabaques, «canzás» e cânticos na «língua de Angola». Branca dançou durante um certo tempo apenas vestida com uma tanga branca e torço borrifado com pó de pemba, até que deu um grande salto e caiu no chão, como que desmaiada, entrando em transe mediúnico. [...] Branca então levantou-se e falou com a voz alterada, invocando o espírito de seu falecido filho mais velho, que hesitou em baixar, intimidado pelo grande número de pessoas presentes; só incorporou-se em Branca depois que uma mesa foi arranjada com comida e aluá. O espírito então comeu e bebeu as oferendas e depois entrou no mato, de onde trouxe uma erva para curar a afecção de Felícia.

1720-1740: Iniciavam-se os toques, cânticos e danças até que Luzia [Pinta, africana de Angola] entrasse em transe mediúnico, quando então tiravam «uma cinta que tinha apertada na barriga» e lhe vestiam roupas variadas, cocares de plumas e guizos. [...] Quando em transe, Luzia falava numa língua incompreensível para os brancos [...] passando a sessões de curas e adivinhações, na qual usava ervas, determinados pós, «certa bebida de vinhos» e manipulava símbolos. [...] Luzia, além dos anjos, tinha a capacidade de incorporar entidades de diferentes ordens, tanto ancestrais quanto divindades.

São dos Calundus baianos que operavam magisticamente nos termos das citações acima que nasceram os primeiros terreiros de Candomblés na Bahia. É destes Calundus baianos que nasceu, em verdade, o Candombé de Angola. Na verdade os Candomblés da Bahia são a versão urbana dos Calundus, cuja prática se dava em âmbito rural e doméstico, um culto direcionado as divindades e espíritos familiares. É na migração do culto rural e familiar para as áreas urbanas que os Calundus acabaram por dar formação e nesse processo foram substituídos pelos terreiros de Candomblé.

Muito embora os Calundus tivessem a característica de um culto familiar e distante das áreas urbanas, eles possuíam um intricado sistema de hierarquia espiritual e recebiam noviços por meio de ritos de iniciação. Além disso, os Calundus desenvolveram um calendário de festividades e de atividades públicas; ao mesmo tempo, forneciam atendimentos individuais pagos, o que garantia a subsistência e independência financeira dos calunduzeiros. Os Candomblés herdaram toda essa estrutura dos Calundus.

É por volta do fim do Séc. XVI, entre 1788 e 1830, que aparece o primeiro terreiro de Candomblé formalmente organizado, o Candomblé da Barroquinha do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. Este terreiro foi fundado por três mulheres africanas naturais de Kêto e que eram antigas escravas que foram libertadas. É deste primeiro terreiro que nasceram os terreiros mais ilustres da Bahia até os dias de hoje. E é interessante notar, nas palavras da Mãe Stella de Oxóssi, descendente espiritual direta dessa espiritualidade candomblecista, a crença espiritual fundamental da maioria das tradições de Cabala Crioula:

[...] àqueles que obtiveram êxito de seu retorno a òrun poderão nos visitar com ancestrais espirituais. [...] O que chamamos de alma, um elemento abstrato, logo será um ancestral e [...] se tornará um conselheiro para quem fica.

Citado em Santos, M. S. A. ÒṢósi: O Caçador de Alegrias. Secretaria da Cultura e Turismo de Salvador, 2006.

Como veremos, é da tradição do Candomblé que nasceu a Quimbanda Tradicional, que compartilha da mesma posição metafísica citada acima, mas não exatamente nos mesmos termos. Na linguagem da Quimbanda, àqueles que obtiveram sucesso na deificação da alma e foram aceitos nas hordas de Maioral, tornam-se ancestrais divinizados entre os Poderosos Mortos, as Legiões de Exus e Pombagiras.

Se a grande massa de escravos que chegaram à Bahia está diretamente conectada a organização dos primeiros Calundus e Candomblés, outro estado que também é inserido na rota*  da Cabala Crioula no Brasil é o Rio Grande do Sul, berço do Batuque.

[* Nota]: Não confundir com a rota do tráfego negreiro. Na verdade, o Rio Grande do Sul nunca esteve na rota do tráfico de escravos; a mão de obra negra que chegou àquela região foi por vias continentais. É interessante notar também que diferente da Bahia, os negros que aportaram no Rio Grande do Sul eram em sua grande maioria bantus que conheciam e se identificavam com a cultura yorubá. Isso significa que i. os bantus que chegaram no Sul do Brasil também cultuavam as deidades yorubá, os Òrìṣàs e; ii. que os Calundus baianos influenciaram a formação de grupos afroreligiosos no Sul. E porque uma grande massa de bantus aportou na região, considera-se que o Rio Grande do Sul também seja o berço da Quimbanda do Brasil.

A presença de africanos no Rio Grande do Sul pode ser rastreada na história desde 1635, no entanto, como o estado só foi reconhecido em 1737 é que podemos estabelecer uma data aceita sobre a mão de obra negra na região. A primeira cidade fundada foi Rio Grande, um importante polo comercial por ser litorânea e abrigar portos de navegação. Como foi a cidade que primeiro recebeu negros na região, é tida como a porta de entrada para as tradições espirituais africanas no Sul do Brasil. Seguindo para Pelotas e depois para Porto Alegre no fim do Séc. XIX, na época a maior parte dos habitantes do estado eram negros.

Em 1814 a maior parte da população era considerada de não brancos. [...] Porém, é Pelotas a mais importante cidade do século XIX no Rio Grande do Sul [...] que apresentava a maior concentração de africanos e descendentes, superados aos 60%.

Silveira. H. A. A. Não Somos Filhos sem Pais: História e Teologia do Batuque no Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado em Teologia. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo.

Diferente dos negros da Bahia, que retornaram as suas origens na África para reabsorção de fundamentações religiosas e trazê-las ao Brasil na intenção de replicá-las nos terreiros de Candomblé, os negros do Rio Grande do Sul não puderam empreender a mesmo retorno e reabsorção cultural devido a fatores econômicos. Por esse motivo, as tradições de Candomblé da Bahia são consideradas por alguns estudiosos e religiosos como mais puras no culto aos Òrìṣàs do que as casas (ou terreiras) de Batuque no Rio Grande do Sul. Mas muito embora isso possa parecer verdadeiro, o Candomblé em muitas casas (terreiros) é uma tradição miscigenada com a cultura cristã.

Batuque, portanto, é o nome da prática de Cabala Crioula no Sul do Brasil, conhecido entre seus adeptos pelo epíteto de Nação, devido à influência Jèjè, Nago e Ijéṣà da cultura yorubá e Kabinda da cultura kimbundo-bantu. É interessante notar que é na nação (subdivisão étnica) Kabinda da cultura kimbundo-banto que encontramos uma maior ênfase no culto a ancestrais divinizados (almas de falecidos familiares, desconhecidos, anciãos e personagens ilustres da comunidade) da maneira como seria praticado na tradição de Quimbanda.

[...] Um forte candidato a precursor da «Macumba» (talvez até uma forma anterior desta) é a prática conhecida alternativamente como Candomblé das Cambindas.

Brown. D. Umbanda: Religion and Politcs in Urban Brazil. New York, 1986.

Não só o Candomblé Cambinda pode ser considerado uma forma anterior da Macumba carioca, mas também a Cabula capixaba e os Calundus baianos. E como vimos anteriormente, a Macumba carioca nos parece ser o sumo ou néctar, a essência que deu origem a Umbanda e Quimbanda como as conhecemos hoje. Valdeli Carvalho da Costa, um Bispo Católico da arquidiocese de São Paulo fez uma interessante e profunda comparação entre a Macumba e a Cabula. Dessa comparação nós podemos citar alguns pontos importantes e o leitor é indicado à leitura do texto: Cabula e Macumba, artigo publicado na Revista Síntese, No. 41 de 1987. Os pontos abaixo, inferidos do texto, demonstram a influência par excellence também da feitiçaria popular europeia na tradição de Quimbanda.

  1. Nos rituais da Cabula eram utilizados símbolos cabalísticos como o selo de Salomão, cruzes e velas. O uso destes símbolos já era amplamente conhecido na feitiçaria sincrética brasileira pela influência das feiticeiras ibéricas exiladas no Brasil desde o Séc. XVI. Na Macumba, o ponto riscado (zimba) que identificava a assinatura espiritual da entidade invocada e que incorporava no sacerdote era desenhado no chão e era composto com símbolos diversos como o Selo de Salomão, o pentagrama, cruzes, luas, estrelas, raios, caveiras, arcos, flechas etc. Todos símbolos amplamente utilizados na feitiçaria ibérica. As zimbas foram profundamente influenciadas pelos selos dos espíritos convocados na tradição dos grimórios europeus.

  2. Tanto na Macumba quanto na Cabula aos espíritos incorporados nos sacerdotes eram oferecidos charutos e bebidas destiladas, acreditando-se que estas substâncias os alimentavam energeticamente, aumentando sua permanência nas giras. Na Macumba e na Cabula os sacerdotes incorporados pelos espíritos dançam, pulam, giram, dão gargalhadas, bebem e fumam.

  3. A cerimônia ritualística na Cabula era chama de engira, palavra que deu origem ao termo gira usado na Umbanda e na Quimbanda. O rito tem este nome porque o sacerdote e adeptos giram o corpo para ampliarem a consciência, promovendo o fenômeno da incorporação.

  4. Na Cabula o adepto busca por um espírito que seja seu guia e protetor espiritual. Essa é uma prática arcaica da magia presente em tradições puramente animistas como aquelas da Cabala Crioula. Ela está presente na Macumba e também na tradição de Quimbanda.*

[* Nota]: Sobre essa arcaica prática da magia, veja meus livros Daemonium (No. 1) e Corrente 93. Veja também o texto Maioral, o Pacto com o Diabo & a Magia Cerimonial Europeia na Tradição de Quimbanda.

Por conta dessa miscigenação étnica bantu-yorubá no Rio Grande do Sul, o Batuque ou Nação não se disseminou da mesma forma que os Candomblés baianos, que impõem uma rígida estrutura de conexão entre o sacerdote e seus filhos. Diferente disso, no Batuque não existe essa estrutura rígida e a conexão dos sacerdotes com seus filhos iniciados costuma não perpetuar além de duas décadas. Além disso, no Batuque, os sacerdotes conhecidos como Bàbàlórìṣà (homens) e Ìyàbàlórìṣà (mulheres) detêm o controle total do terreiro, não existindo hierarquia de cargos como vemos nos Candomblés baianos. No Batuque o sacerdote corta (sacrifica), dirige o ritual, inicia novos adeptos, aconselha e joga (oráculo). Por conta disso, a morte de um sacerdote implica também o fechamento de seu terreiro. Isso impede que tracemos a origem e a continuação cronológica das tradições ou Nações no Rio Grande do Sul.

Mas embora seja difícil estabelecer uma cronologia exata do Culto de Nação no Rio Grande do Sul, o Batuque opera magisticamente com o Culto aos Òrìṣàs como ancestrais divinizados que detêm controle sobre as forças da natureza por meio de sacrifícios propiciatórios e oferendas rituais, bem como a participação dos espíritos dos mortos no mundo material através do fenômeno da incorporação nos ritos da Casa dos Mortos.

Tanto o Batuque gaúcho quanto a Umbanda carioca têm sua gênese por volta de 1908. No entanto, anterior a Umbanda nascida em Niterói, sua precursora é a Macumba, nascida no Rio de Janeiro. Macumba, Umbanda e Quimbanda, todas elas por sua vez bebem muito da Cabula capixaba.

A Cabula é um culto de origem kimbundo-bantu de inclinação iniciática e secreta que se formou no Espírito Santo. Aos seus adeptos, os cafiotos (termo que também designará os praticantes da Macumba carioca), era exigido sigilo absoluto sob pena de morte. Por esse motivo levou muito tempo até que informações genuínas pudessem ser acumuladas para uma apreciação mais profunda do culto. Este já havia sido formado e era praticado pelos negros muito antes da abolição da escravidão no Brasil. Após a Lei Áurea, no entanto, a Cabula se espalhou e chegou a ter mais de oito mil adeptos entre negros e brancos no Espírito Santo. Por volta de 1901 o culto possuía pelo menos três mil membros que se encontravam nas matas e aos redores das cidades para rituais coletivos, sacrifícios e festas.

O termo cabula deriva diretamente da palavra cabala, que chegou aos bantus através dos malês muçulmanos. A palavra cabala significa conhecimento secreto repassado de boca a ouvidos. O culto era sincrético e possuía profunda influência Kabinda e dos malês mulçumanos, quer dizer, negros bantus que conheciam a escrita e a língua árabe. A Cabula, de todas as expressões religiosas africanas no Brasil, derivava os termos do culto da língua bacongo, como por exemplo: camanás (camaradas iniciados do culto); caialos (profanos não-iniciados no culto); camucite (local de culto); embanda (sacerdote do culto), congá (altar de culto). Os trajes ritualísticos da Cabula foram também adotados na Macumba e repassados a Umbanda moderna,* assim como o termo mesa, que designava as reuniões (trabalhos) do culto realizadas nas matas. Nestes trabalhos de mesa os embandas eram auxiliados por cambones, auxiliares de culto que assistiam as entidades incorporadas. Essa prática de auxílio espiritual foi perpetuada na Macumba e repassada as tradições de Umbanda e Quimbanda na função dos cambonos. O termo é kimbundo-bantu e significa negrinho. Os cambones assistiam as entidades anotando suas instruções e servindo-lhes bebidas e charutos; eles também ajudavam e limpavam as áreas de trabalhos mágicos durante as sessões.

[* Nota]: A Umbanda é considerada, em verdade, um dos ramos da Macumba, um desdobramento com influências kardecistas. Ou seja, a Umbanda é a antiga Macumba, no entanto, higienizada ou salubrizada pelas ideias kardecistas.

Os espíritos que se apresentavam nas sessões da Cabula eram chamados de tatás, termo kimbundo-banto que significa pai e é um título dado aos ancestrais familiares e protetores do culto religioso da cultura bantu. Os tatás na cultura bantu assistem seus adeptos nas questões espirituais e nas demandas seculares. Com o auxílio destes espíritos, o sacerdote (kimbanda) bantu pode, por sua vez, dar auxílio espiritual a toda comunidade. Na Macumba e na Quimbanda o termo passou a designar o sacerdote do culto ou, mais precisamente, o chefe do terreiro ou templo (casa de religião). Mas o termo não denota apenas a posição sacerdotal, mas fundamental uma pessoa que detêm grande conhecimento do culto.Os tatás como espíritos ancestrais mais velhos e protetores do culto foram perpetuados na tradição de Umbanda como os Preto-Velhos que hoje assistem as giras. No Candomblé, por outro lado, o termo tatá foi associado aos Òrìṣàs: Eṣù Òrìṣà (Tatá Veludo), Ṣango Òrìṣà (Tatá da Pedreira) etc.

[* Nota]: Algumas tradições de Umbanda com inclinações angolanas e omolocô também usam o termo tatá para designar o sacerdote e chefe do terreiro.

Esta página ainda está em construção!...

bottom of page