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Teurgia, Goécia e Quimbanda



Nota: texto escrito como resposta a um leitor Pergunta: «[...] li seu artigo «A Mulher de Branco» onde você diz que «acreditava, por exemplo, que a ciência do corte era uma técnica magística degradante, praticada por feiticeiros que haviam se distanciado dos segredos ocultos da magia ou sacerdócio teúrgico. No entanto, são os sistemas de teurgia ou feitiçaria que, tendo perdido a ciência do corte estão distantes dos Arcanos Ocultos da Arte dos Sábios.» O que eu gostaria de saber qual foi o entendimento que o fez mudar de opinião? Eu pergunto isso porque faz muito sentido o que você fala sobre o resgate de uma prática mágica «pé no chão» como disse no seu texto. Essa mudança bem paradoxa ocorreu por causa da sua iniciação na Quimbanda? E aproveitando, o que te fez largar a Teurgia pela Quimbanda? A Quimbanda é melhor?




Não há outro caminho que eu possa começar essa resposta que não seja este: eu era um completo e total ignorante. Influenciado por teoremas de magia moderna e por um arauto da ignorância magística por muito tempo, eu me convenci que a ciência do corte ou sacrifício animal tratava-se de uma prática primitiva, no sentido pejorativo, que não condizia com os anseios espirituais de um mago. Mas tudo começou a mudar quando assumi ou desisti da magia moderna, dos rituais psiúrgicos de banimento e de um ocultismo pseudocientífico.


Toda essa história é muito extensa e eu já falei bastante dela, inclusive no Daemonium No. 1. Então vou me concentrar no tema do sacrifício. Jâmblico foi o filósofo e teurgo neoplatônico que me auxiliou nessa invertida total saindo da magia moderna e me aprofundando na magia da Antiguidade. Carinhosamente eu o considero o meu padrinho dessa mudança. Seu livro, De Mysteriis, traz no capítulo cinco uma profunda discussão sobre esse tema, o sacrifício de animais. Na verdade, podemos considerar este capítulo o eixo ou espinha dorsal dessa obra. Vamos começar com essa ideia básica: o sacrifício animal tratava-se de uma experiência espiritual compartilhada por muitas culturas na Antiguidade pré-cristã. Portanto, não é possível compreender as práticas magísticas dos magos da Antiguidade e suas experiências espirituais sem levar em conta essa ideia. Toda a cultura mediterrânea se valia de sacrifícios para alimentar os daimones. Aqui entenda esse termo, daimon, como sinônimo para as muitas deidades adoradas no Mediterrâneo pré-cristão. Libações eram derramadas a eles, objetos como estatuetas e talismãs eram consagrados e dedicados a eles, animais eram sacrificados pelo corte, queimados ou comidos em nome deles. Há uma interessante discussão sobre esse período no capítulo um do Spiritual Taxonoimies and Ritual Authority: Platonists, Priests and Gnostics in the Third Century C.E. O capítulo em questão trata da interpretação dos filósofos dessa época sobre os sacrifícios de sangue. Há inúmeras publicações com uma ampla discussão sobre o poder e o valor do sacrifício nas crenças religiosas do Mundo Antigo.


Na teurgia não é diferente. O eixo central do ritual teúrgico é o sacrifício de sangue as deidades. Jâmblico oferece uma explicação coerente, frente a crítica de seu professor, Porfírio, aluno e biógrafo de Plotino, que era cético em relação a prática da teurgia. Além disso, outros apologistas cristãos também eram céticos em relação ao sacrifício e produziam filosofia religiosa e teologia sobre o tema, o condenando como espiritualmente degradante. No entanto, as explicações de Jâmblico não só refutam Porfírio e outros apologistas cristãos, mas legitimam a ciência do corte como o mecanismo ou engenharia fundamental e estrutural da teurgia.


Na teurgia, a ciência do corte é o eixo porque é do sacrifício que todos os outros fenômenos teúrgicos rituais ocorrem: divinação através de oráculos, divinação por incorporação mediúnica, purificação, ascensão da alma, consagrações, imantações etc. O corte é o elemento fundamental que dá a ignição no processo teúrgico. Na tradição da Quimbanda não é diferente: a ciência do corte é o eixo da Quimbanda. Sua prática está em direta harmonia e conexão com o entendimento do sacrifício no Mundo Antigo. Foi este o entendimento que mudou minha opinião acerca do corte. Não foi a iniciação na Quimbanda que mudou minha opinião, mas é a minha iniciação na Quimbanda o resultado de minha mudança de opinião. Eu busco a verdade e vou sempre na direção dela!


Nas religiões e cultos de mistérios pré-cristãs da Antiguidade o sacrifício de um animal consagrado e santificado tratava-se de um ofício sagrado. O sangue carrega a essência da vida que alimentava as deidades. Por meio do sangue sacrifical se estreitam os laços entre os homens e os deuses, entre as almas encarnadas e seus ancestrais; busca-se através do sangue por proteção espiritual e cura das mazelas do corpo e da mente; o sangue do sacrifício é uma oferenda que glorifica as deidades, seus poderes, e através dele é esperado receber as virtudes e bênçãos dos deuses e ancestrais. Como o sangue está estreitamente conectado a fertilidade e continuidade da vida, o sacrifício é o ato teúrgico de se doar a vida para receber dos deuses a própria vida na forma de renovação espiritual em nossa jornada encarnados na matéria. Além disso, o sacrifício liberta a alma do animal de seu cativeiro no reino da geração, o que garante a continuação de sua existência no pós-vida: todo animal sacrificado torna-se um espírito de alma deificada. Isso tem implicações profundas e um grande impacto na carreira magística, pois que estes espíritos podem auxiliar o feiticeiro em sua jornada. Este arcano iniciático do passado está presente, por exemplo, nos Papiros Mágicos Gregos. Na feitiçaria dos papiros animais eram deificados através de sacrifícios, tornando-os paredros, espíritos assistentes. Na cultura mágico-espiritual do Mediterrâneo, o sacrifício propiciatório as deidades, tanto os sacrifícios públicos quanto os privados, eram a engenharia mágica por trás dos processos teúrgicos (místicos) e taumatúrgicos (mágicos). No texto O Sacrifício na Feitiçaria dos Papiros Mágicos Gregos eu ofereço uma análise acurada do processo sacrifical dos feiticeiros greco-egípcios da Antiguidade.


É possível estabelecer uma equivalência ritual teúrgica entre a Quimbanda, a teurgia e as religiões e cultos de mistérios pré-cristãs. O típico ritual grego de oferenda e sacrifício é chamado de thysia. Trata-se de um ritual cujas etapas estão em harmonia com um típico ritual de Quimbanda de imolação sacrifical. Tanto na Quimbanda quanto na teurgia de Jâmblico a imolação de um animal requer preparos exaustivos, seja do sacerdote ou de um grupo que acompanha o ritual. São preparativos pessoais como jejuns, preces e invocações; cuidados com o local de sacrifício e com animal; cânticos, defumações e purificações que desanuviam a mente e conectam os feiticeiros as deidades, deuses ou ancestrais. É seguro dizer que o ritual de imolação expande a consciência e confere uma prístina gnose desenvolvida em camadas no curso das etapas rituais. O thysia grego, por exemplo, iniciava-se com uma procissão até o templo ou área onde o animal seria imolado em glória aos deuses. A procissão é o esforço pessoal que cada um deve empreender para sair de um estado de consciência profano e adentrar a um estado de consciência espiritual. A próxima etapa importante do thysia era a purificação através da água lustral, um poderoso agente antisséptico preparado teurgicamente para lavar as mãos do sacerdote e limpar o local e todos os participantes. Seguia-se a etapa da invocação, libações aos deuses e imolação ritual. Durante a imolação o sacerdote dedicava a alma e o sangue do animal aos deuses ou ancestrais através de preces, cantos, encantamentos e, finalmente, cortando a garganta do animal de maneira correta. Tudo isso está contido em um ritual de Quimbanda; não necessariamente nos mesmos termos aqui apresentados. Como na teurgia de Jâmblico, no ritual de Quimbanda de imolação sacrifical busca-se a gnose do espírito que é alimentado pelo sangue. Invoca-se por sua manifestação, auxílio e proteção espiritual; um kimbanda pede que suas entidades, através do sacrifício, compartilhem com ele seus poderes e conhecimento arcano de magia. Utilizado sobre imagens ou em assentamentos, o sangue sacrifical ativa zonas de poder.


É interessante notar como as opiniões de Porfírio sobre o corte ou sacrifício influenciaram as ideias dos apologistas cristãos, principalmente Santo Agostinho, maior teólogo da Igreja até São Tomás de Aquino na Idade Média. Como a cultura moderna do Ocidente foi construída sobre as premissas cristãs, a opinião que hoje temos de modo geral sobre sacrifício é a mesma de Porfírio. Ele acreditava que os sacrifícios de sangue apenas alimentavam daimones e eram degradantes a própria saúde física e mental. Na demonologia de Porfírio, os daimones ocupavam a escala mais inferior da hierarquia celestial, responsáveis pela harmonia de toda maquinaria do universo físico, mesmo sendo eles invisíveis. As almas humanas ainda estavam abaixo dos daimones, mas em direta conexão com eles, sendo capazes de alimentá-los. Ainda, Porfírio acusava a teurgia e o sacrifício animal de insalubres, pois poluíam a atmosferas e os ares superiores com a matéria densa e dejeto de animais queimados. Para Porfírio a prática do sacrifício era algo recente na Antiguidade, dando ênfase que em períodos anteriores os sacrifícios eram feitos sempre na forma de alimentos, grãos e frutos. A crença de muitos sobre essa questão na Quimbanda é que o sacrifício serve para alimentar entidades de baixíssimo nível, que atuam muitas vezes como vampiras, necessitando de mais e mais sangue de seus devotos. Na concepção popular, Exus e Pombagiras são entidades malignas sedentas por sangue. Seria o equivalente a essa interpretação de Porfírio sobre os daimones malignos; mas todo cuidado é pouco nessa equivalência. No entanto, Exus e Pombagiras são mestres espirituais, criaturas iluminadas através de um refinado processo de deificação espiritual. Estas designações espirituais, Exu ou Pombagira, não são dadas a entidades de baixo nível (égún ou kiumba), mas a almas deificadas que se tornaram dignas de receber tais designações espirituais.


Jâmblico refuta os argumentos de Porfírio. Ele diz que o dejeto na forma de fumaça de animais queimados não polui os ares superiores, afinal ela não pode ultrapassar a Lua; também coloca ênfase que os daimones não precisam de nenhum tipo de alimento conferido pelos homens, pois na cadeia teúrgica hierárquica, as criaturas de baixo sempre se alimentam das criaturas de cima, não das de baixo. As almas encarnadas no reino da geração estão abaixo dos daimones na hierarquia. E se os daimones não precisam de alimentos conferidos pelos homens, muito menos os deuses. Então, se não são os deuses ou os daimones as entidades beneficiadas pelo sacrifício, por que fazê-lo? Afinal de contas, quem se beneficia da imolação sacrifical? Nós, as almas encarnadas que nos beneficiamos! Para Jâmblico, o sacrifício era o elemento chave para a purificação da alma, através do qual ela tornar-se-ia eficientemente um augoeides, quer dizer, um ovo de luz reluzente, uma alma deificada. Portanto, a imolação sacrifical na teurgia liberta a alma de seus apegos ao reino da geração. Jâmblico também discute a validade do sacrifício para resolver as demandas da vida, mas sua ênfase consiste na purificação da alma. Ao alimentar a pira de fogo com sangue e carne animal, entrega-se ao fogo também as mazelas da alma, suas limitações e escuridão. A alma se ilumina no curso da imolação sacrifical. Como podemos ver, essa visão está em oposição ao entendimento tradicional do sacrifício ritual que as religiões pré-cristãs tinham na época, como vimos acima. Então Jâmblico oferece uma nova explicação em defesa da imolação teúrgica de um animal. Nós encontramos essa premissa teúrgica na Quimbanda; um ritual de imolação na Quimbanda também purifica a alma de suas mazelas, além de estreitar os laços com o Exu tutelar.


Em detrimento de tudo isso, passou a ser lógico para mim que a ciência do corte trata-se de uma ferramenta fundamental na prática da feitiçaria tradicional brasileira que contém toda herança e o melhor da teurgia e goécia gregas, nesses termos. A goécia, tecnicamente, trata-se do tráfico com alma de mortos. Sendo a Quimbanda uma tradição que trata especificamente com a alma de mortos deificados, é uma goécia brasileira. Passou a fazer muito sentido para mim tornar-me um kimbanda. Então não que a Quimbanda seja melhor que a teurgia ou goécia gregas, mas trata-se de uma teurgia e goécia brasileiras.


Muitos podem se perguntar: mas como? Como a Quimbanda herda fundamentos da feitiçaria e teurgia da Antiguidade tardia? Através de duas correntes mágicas: a feitiçaria crioula africana e a feitiçaria popular europeia. Ao nos debruçarmos sobre a feitiçaria dos papiros, notamos que muitos de seus procedimentos magísticos estão bem próximos daqueles das culturas crioulas da África. É possível perceber uma equivalência e similaridade de técnicas de feitiçaria entre o que encontramos nos papiros e o que encontramos nas culturas banto e yorùbá da África. Como eu exponho em O Espírito de São Cipriano, o néctar da feitiçaria dos papiros encontra-se nas diversas edições populares de O Livro de São Cipriano, que chegou no Brasil junto as feiticeiras exiladas de Portugal no Séc. XVI. O Livro de São Cipriano convoca, em verdade, a magia eclética e sincrética da feitiçaria na Antiguidade, principalmente a copta dos Sécs. IV e VI.


A feitiçaria dos Papiros Mágicos Gregos é essencialmente goética e espelha as crenças greco-egípcias dos feiticeiros da Antiguidade tardia. Sobre a feitiçaria crioula africana na Quimbanda, nem precisamos falar nada por aqui. O texto A Tradição de Quimbanda já traz muitas informações preciosas sobre isso. A Quimbanda é uma tradição espiritual que agrega em seu escopo a influência de inúmeras correntes mágicas, místicas e filosóficas.


Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite

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