Quimbanda é Goécia Brasileira
Atualizado: 30 de set.

Excerto de um ensaio que será publicado na Revista Nganga No. 10.
No segundo volume do Daemonium eu fiz uma introdução concisa sobre o tema, abordando pela primeira vez no Brasil a Quimbanda como a goécia tradicional brasileira. No livro destaquei que no curso da comparação entre a Quimbanda e a goécia, suas duas fases, a grega antiga e a salomônica medieval, deveriam ser consideradas em sua inteireza para uma compreensão profunda da matéria:
A Quimbanda pode ser considerada, de modo geral, a goécia brasileira. Leve em consideração dois pontos: i. a goécia grega é a prática da necromancia, quer dizer, a comunicação com os mortos; ii. a goécia pós interpretatio romana é a convocação e imprecação de demônios. A Quimbanda é uma arte de feitiçaria necromantica, porque lida com Exus (espíritos de mortos deificados e égún diversos), e estes, por sua vez, têm domínio sobre demônios aéreos, telúricos e ctonianos.[1]
Nesse excerto apresento a Quimbanda abarcando em seu escopo as duas fases da goécia, a antiga e a salomônica. Tanto no Daemonium (Vol. 2) quanto no Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu disserto com mais ênfase acerca da incursão diabólica ou demoníaca que ocorreu na Quimbanda em seu segundo momento, a partir da síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle (1913-1952) na década de 1950. Em outras palavras, nestes dois livros eu dou mais ênfase na conexão que se estabeleceu entre a Quimbanda e a goécia salomônica a partir de um grimório moderno conhecido como Grimorium Verum, uma gramática de magia noturna com o objetivo de pactuação demoníaca com espíritos (demônios) do ar, da terra e do submundo, onde se lê:
Aqui começa o Sanctum Regum, chamado o rei dos Espíritos, ou as Clavículas de Salomão, mui sábio Nigromante, ou Rabino, hebreu. Na primeira parte estão contidas diversas disposições de caracteres, pelos quais são invocadas as Potências, os Espíritos, ou melhor dizendo, os Diabos, para os fazer vir quando vos agradar, cada um de acordo com sua potência, e para lhes constranger a fazer tudo que tu lhes ordenar, e sem jamais se aquietar por qualquer coisa, desde que eles estejam satisfeitos com sua parte, porque esse tipo de criatura não faz nada por nada.[2]
Essa passagem esclarece o pano de fundo da síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle em seu livro Exu, de 1952, do qual derivou a ideia moderna de Quimbanda: Exus e demônios associados, sincretizados. É dessa síntese, como tronco tradicional da Quimbanda,[3] que derivam as vertentes tradicionais da Quimbanda, das quais as mais conhecidas são a Nàgô, a Mussurumim e a Malê. No livro Ganga eu explico que o Sanctum Regun é ambiente mágico da Quimbanda:
Lúcifer é Exu-Rei, a Unidade Absoluta de onde emana todo o poder da Quimbanda. [...]
Na Quimbanda, portanto, Exu-Rei representa a unidade transcendente de todos esses mitos e símbolos aglutinados sob a alcunha de Lúcifer. Na figura de Exu-Rei, representa a Unidade da Trindade Maioral: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth.[4] É por isso que se diz que se trata de um Exu primordial e, portanto, nunca se apresentando em terra, i.e. manifesto em incorporação.
Ele é o Sanctun Regnum, i.e. o Reino Divino da Quimbanda, sua totalidade. Os Reinos da Quimbanda derivam dele, que é a fonte ou o trono de onde surge, de onde começa, toda a Quimbanda. Por isso é dito que Maioral é a primeira encruzilhada de fogo, o princípio de tudo, o Absoluto. Na Quimbanda Lúcifer é Deus![5]
Esse pano de fundo demonológico estabeleceu a teologia, a cosmogonia, a cosmovisão, a estrutura e a mecânica de comunicação com os espíritos: o pacto diabólico. Assim como os demônios do Verum, os Exus devem ser pagos em toda e qualquer ocasião onde seja requerido o seu trabalho. Os caracteres mágicos do Grimorium Verum foram diretamente associados aos Exus, estabelecendo um sincretismo direto entre Exus e demônios, desenvolvendo métodos práticos onde i. os Exus comandam e dirigem os demônios (Nàgô); ii. os demônios e Exus são acessados separadamente, mas podem trabalhar juntos (Mussurumim) ou; iii. os demônios são Exus disfarçados (Malê). No Daemonium destaco:
A Quimbanda uniu o melhor de três culturas: ameríndia, africana e ibérica em um sistema de demonologia e diabolismo prático com métodos únicos capazes de criar uma interface entre os éteres habitados por demônios e àqueles habitados pelos mortos. É a goécia brasileira.[6]
A Quimbanda como goécia brasileira agrega em seu escopo, portanto, a goécia necromântica grega e a goécia nigromântica ou demoníaca medieval. Na Apresentação do livro Ganga eu menciono que:
Uma conexão profunda se estabeleceu na tradição de Quimbanda desde a década de 1950 com a demonologia europeia e as técnicas derivadas dos grimórios para conexão e coerção dos demônios, o que ficou popularmente conhecido como nigromancia, necromancia, maleficium, goécia, magia negra, magia demoníaca ou baixa magia. Na magia cerimonial, a classe de espíritos que lidam com os éteres ctônico, telúrico e aéreo sublunares são as criaturas espirituais destes éteres, classificadas genericamente como demônios na cosmovisão cristianizada do Ocidente. Como esses éteres são a área de atuação dos Exus e Pombagiras (mortos deificados) da Quimbanda, foi possível conectá-los a atuação de demônios. Assim foi estabelecida uma ponte através da qual foi possível convergir Exus e demônios. [...] A Quimbanda nasce como uma tradição de goécia brasileira, porque da rica herança ancestral ameríndia, africana e europeia, desenvolveu um sistema de feitiçaria nigromântica próprio.[7]
Retornando mais no passado, entretanto, neste ensaio eu coloco mais ênfase na primeira fase da goécia como a antiga religião necromântica dos gregos, praticada no âmbito familiar e sem qualquer intervenção do Estado. Sobre a goécia e a religião grega antiga Daniel Ogden diz:
O principal significado dos ritos básicos de evocação [dos mortos] reside no fato de que seu sistema como um todo (cova, libações de likatron [mel e leite], vinho e água, oferta de cevada, oferta de sangue, holocautro e orações) é idêntico ao das oferendas normais aos mortos em túmulos.[8]
Para entendermos o escopo total da Quimbanda como goécia brasileira, nós precisamos retornar no tempo, para um período vastamente esquecido – ou no mínimo rejeitado – da história da magia no Ocidente, numa época em que Homero ainda não havia negligenciado os deuses ferozes, caprichosos, demoníacos e perigosos dos cultos locais e formas populares de mitos primitivos, em detrimento dos deuses olímpicos dos aristocratas gregos. Para compreender a Quimbanda como goécia tradicional brasileira, primeiro é preciso compreender a goécia como goécia, porque a maioria das estórias tecidas sobre goécia na Esotérica[9] não foram escritas por ela mesma...
A palavra goécia – a arte que sua prática representa e a envergadura de seus efeitos taumatúrgicos – tem sido muito mal compreendida ou interpretada no contexto da magia moderna. Para a grande maioria dos ocultistas modernos, o termo está associado a um dos grimórios salomônicos mais famosos, o Lemegeton, uma gramática de magia noturna do Séc. XVII popularizada no Ocidente a partir de uma tradução incompleta para o inglês feita por MacGregor Mathers (1854-1918), encomendada e publicada por Aleister Crowley (1875-1947) em 1904.
Este grimório apresenta uma versão cristianizada do exercício da goécia; e muito embora ela tenha sido diretamente associada a este grimório noturno e posteriormente a outros da mesma natureza como o Grimorium Verum, o termo vem do grego antigo, mais de quinze séculos antes da existência dos grimórios. São séculos de história não contada que os autores modernos negligenciam, reduzindo a goécia a convocação dos demônios do Lemegeton e raras vezes de outros grimórios como o Verum. Isso torna o entendimento popular da goécia tanto impreciso quanto pateticamente reducionista, portanto, desqualificado e amador. É seguro dizer que a magia moderna restringe e deturpa a compreensão da arte da goécia como derivada de suas raízes ancestrais gregas.
As palavras que designam o praticante de magia, hora magista, o aprendiz, e hora mago, o mestre, vêm do persa magūš que os gregos assimilaram como mageia. Note que o nome que designa o operador deriva diretamente de sua arte: mago e magista derivam da prática da magia. O termo goécia, que designa a arte, por outro lado, deriva do operador, o feiticeiro (goēs) grego arcaico. Tecnicamente, portanto, o termo goécia (goēteia) como compreendido pelos gregos daquele tempo, entre os Sécs. X e VII a.C., era usado para designar um indivíduo antes de sua arte.
A convocação de maus espíritos – embora relevante no contexto primordial da goécia e o conceito fundamental de sua interpretação moderna pós interpretatio christiana[10] – não representa os propósitos originais do goēs grego ou mesmo a natureza da própria goécia. Os autores modernos traduziram a palavra goécia como urro, grito horripilante ou uivo, na forma de um sopro sibilado. Mas no segundo volume do Daemonium eu resumi a origem grega da palavra:
O termo goécia vem do grego goētes, que traduz-se como feiticeiro, bruxo, encantador ou adivinho. O singular goēs tratava-se de um especialista em lidar com os mortos e sua arte foi chamada de goēteia. Esses termos foram elaborados a partir da raiz goos, que significa chorar, lamentar, porque as conjurações aos mortos nesse período clássico grego, Séc. V a.C., se tratavam de lamentações fúnebres. Essas lamentações eram executadas diretamente na cova ou tumba dos falecidos e a eles eram oferecidos sacrifícios e oferendas como libações de mel e leite. Com o tempo a prática da goécia grega foi associada a convocação não só de mortos que poderiam agir para auxiliar os vivos, os nekydaimones, mas também a toda sorte de espíritos ctônicos sob a autoridade mágica de deusas como Hécate ou Serápis. Na interpretação cristã dessa prática de feitiçaria grega, a goécia então passou a ser considerada uma prática ainda mais ilícita associada a todo tipo de demônios.[11]
Então lamentar é uma tradução mais acurada para o grego goēteia. O tom de voz dessas lamentações fúnebres definia a natureza da prática, junto da importância dada as questões que envolviam a entrada e saída dos mortos no Submundo: a goécia grega se preocupava com a condução dos mortos até o Submundo ou a convocação deles desde lá. Essa é a raiz antiga da verdadeira conexão que existe entre a goécia e necromancia, que posteriormente na Idade Média e a partir do Renascimento tornou-se magia negra.
Os precursores mais antigos da goécia eram manganeumatas das sombras: seu culto era ctônico e eles estavam preocupados com os mortos e seu reino apenas; e muito embora tenham ocorrido aproximações e até sincretismos em um tempo posterior, a goécia possuía pouca ou quase nenhuma conexão real com a religião aristocrática dos deuses olímpicos, porque a distância entre os cultos aos deuses ctônicos e os cultos aos deuses celestiais ou urânicos era consideravelmente grande.
Os deuses urânicos ou olímpicos eram invocados à luz do dia, em um estado de purificação e zelosa limpeza, com vestes brancas; a ocasião era sempre alegre, o altar era elevado sobre a terra e a vítima sacrifical dirigia seu olhar para os céus no momento do sacrifício.
Os mortos, por outro lado, eram honrados com lamentações, significado da palavra grega goēteia, como vimos. As cerimônias aos mortos eram geralmente noturnas. As vestes eram rasgadas e maltrapilhas, contaminadas com sujeira das áreas mortuárias; os cabelos soltos e bagunçados. O altar aos mortos era erguido ao lado das covas e em algumas ocasiões havia até cozinha no local, onde as oferendas aos mortos eram preparadas. Um buraco era aberto para o abate da vítima sacrifical, que dirigia seu olhar diretamente para ele, por onde o sangue chegava até o defunto, com libações de leite e mel, assim como as oferendas.
Muitas características do culto dos mortos foram compartilhadas com divindades e heróis ctônicos. Algumas distinções feitas entre os ritos dos dois tipos de culto, ctônico e celestial, no passado não são tão vinculativas quanto se supunha; alguns santuários e ritos incluíam elementos e características associados a entidades ctônicas e celestiais.
Compreender a goécia como goécia, i.e. culto necromantico, não é fácil. Existe a necessidade de cavar fundo nos mitos gregos pré-homéricos. Apesar da complexidade das relações entre a religião celestial ou urânica e os cultos ctônicos, o que conhecemos como goécia no contexto da magia no Ocidente representa essencialmente a sobrevivência de elementos primordiais de feitiçaria e necromancia dentro de tradições hospedeiras associadas a outros personagens, principalmente Salomão. Além disso, as abordagens mágicas adaptadas e sistematizadas na Antiguidade pelos neoplatônicos que, invariavelmente, fizeram tentativas breves para definir a goécia sobre seus pontos de vista, geralmente hostis à magia de modo geral, construíram a priori um desentendimento profundo sobre o tema. Mas como aponta Fustel, essa crença e esses ritos [de reverência aos mortos] são o que há de mais velho na raça indo-europeia, e também o que houve de mais persistente.[12]
É difícil falar de goécia em seus próprios termos ao competir com as suposições acumuladas de tantos séculos feitas pelos neoplatônicos da Antiguidade média e tardia, bem como suas reverberações no Renascimento, Idade Moderna e Contemporânea. Nos últimos dois mil anos, nossa civilização viveu com as suposições inerentes à Religião Revelada. As civilizações da Grécia Clássica, e todas as outras civilizações do Mundo Antigo, foram construídas ou sobrepostas a uma tradição de milhares de anos do que é conhecido como Religião Natural. Enquanto a Religião Revelada é entregue do alto por uma revelação – frequentemente representada por um Livro – a Religião Natural é construída de baixo, a partir das raízes ancestrais de um povo ou cultura, sendo o resultado da observação e interação com a Natureza, incluindo forças sobrenaturais ou numinosas. No coração dessas duas abordagens sobre a religião estão dois mundos totalmente diferentes.
Esses dois mundos são epicentros de duas cosmovisões distintas, e podem ser chamados de mundos celestial e ctônico. Eles não representam os limites dessas duas cosmovisões, mas seus núcleos. Ou seja, embora a Religião Revelada tenha como base o reino celestial ou supercelestial, os planos de luz e perfeição, ela não exclui a comunicação com espíritos sublunares, aéreos, telúricos ou ctônicos. De igual modo, embora a Religião Natural tenha como base a terra e o submundo, i.e. uma espiritualidade que lida com os espíritos da Natureza, isso não a impede de lidar com os deuses urânicos.
A fonte da revelação da Religião Revelada é celestial, o núcleo de sua cosmovisão. Em contraste, o reino ctônico era a fonte do poder oracular em todos os estágios da religião grega. A habilidade ou o dom da profecia, por exemplo, era originalmente atribuída ao goēs.[13] Os reinos celestiais ou transcendentais tornaram-se todos importantes na magia posteriormente, principalmente como a fonte da autoridade do mago, a exemplo da própria feitiçaria dos Papiros Mágicos Gregos. Mas em um período anterior, a terra como fonte de vida e o submundo como morada dos mortos eram centrais para a religião e a magia. Mais ao ponto, grande parte da magia de tempos posteriores – particularmente aquela caracterizada como goécia – foi uma adaptação – pode-se até dizer uma distorção – de seu exercício mais antigo. No entanto, a transição da ênfase os cultos ctônicos para os cultos celestiais no que concerne a autoridade mágica, não envolveu uma grande mudança de caráter ou conteúdo na aplicação das técnicas. No primeiro volume do Daemonium eu demonstrei que a diferença entre teurgia e goécia nunca repousou sobre as técnicas e tecnologias mágicas utilizadas, mas no caráter e personalidade do operador.
Continua na Revista Nganga No. 10...
NOTAS: [1] Fernando Liguori. Daemonium (Vol. 2) Clube de Autores, 2022, pp. 87. [2] Grimorium Verum, 1817. Tradução em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. I. Clube de Autores, 2010, pp. 438. [3] Eu explico o tronco tradicional da Quimbanda no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023. [4] Também referida como Trindade Infernal porque Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth equiparam-se no Grimorium Verum e zeitgeist da época, a uma trindade pagã do submundo, Lúcifer como uma figura de Hermes-Prometeu, mais Baal e Astarte. Veja o segundo volume de Daemonium. [5] Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 261-2. [6] Ibidem, pp. 49. [7] Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 22-3. [8] Daniel Ogden. Greek and Roman Necromancy. Princeton University Press, 2001, pp. 164. [9] Pelo termo Esotérica me refiro ao que se conveniou chamar de Esoterismo Ocidental. Veja o texto A Quimbanda & o Ocultismo Moderno. Veja também Antonie Faivre. O Esoterismo. Papirus, 1994. Do mesmo autor veja Modern Esoteric Spirituality. Crossroad, 1992. Veja ainda Wouter J. Hanegraaff. Esotericism and the Academy: Rejected Knowledge in Western Culture. Cambridge University Press, 2012. [10] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 56. [11] Fernando Liguori. Daemonium (Vol. II). Clube de Autores, 2022, pp. 81. Veja Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020. Veja também Sarah Iles Johnston. Restless Dead: Encounters between the Living and the Dead in Ancient Greece. University of California Press, 1999. Para o entendimento de goécia como Religião Antiga veja Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2009. [12] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2022, pp. 30. [13] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2023, pp. 124.