O Livro de São Cipriano & a Quimbanda

Toda Quimbanda é cipriânica. No segundo volume do Daemonium eu expliquei o impacto de O Livro de São Cipriano no primeiro momento da Quimbanda no Brasil, tanto no período colonial quanto no fim do Séc. XIX e início do Séc. XX, na formação das Macumbas cariocas. O Livro de São Cipriano aporta no Brasil, como mencionei, com as feiticeiras ibéricas degredadas pelo Santo Ofício de Portugal, e é nas suas páginas que Maria Padilha chegou ao Brasil para depois se tornar a primeira e a mais importante de todas as Pombagiras da Quimbanda, considerada a sua guardiã. A primeira menção a Pombagira Maria Padilha fora das páginas de O Livro de São Cipriano foi feita por João do Rio em sua pesquisa, As Religiões do Rio, em 1900.
A primeira menção a O Livro de São Cipriano ocorreu em 1620, no processo inquisitório de Pedro Afonso, um curandeiro feiticeiro natural de Fornelos. O próprio Pedro teria copiado a mão O Livro de São Cipriano a partir de um manuscrito que teve acesso trinta anos antes em Basto, pelas mãos de Gonçalo Paes, que também o copiou a mão trinta e sete anos antes.[1] Entre os Sécs. XV e XVIII, em inúmeros processos inquisitórios começam a aparecer menções sobre O Livro de São Cipriano e a presença de feitiçaria africana em Portugal. Como menciono no texto Feiticeiros Africanos em Portugal, ouve um profundo processo de miscigenação das técnicas de feitiçaria africana com as práticas de feitiçaria católica popular presentes em O Livro de São Cipriano naquele período, o que mudou radicalmente a visão de mundo da comunidade africana que vivia em Portugal, escravos, alforriados e nascidos livres.
Havia indícios que a feitiçaria cipriânica, i.e. católica popular, tivera se miscigenado com as técnicas africanas de feitiçaria no Brasil Colônia. No entanto, com as novas pesquisas feitas nos processos inquisitórios de Portugal, hoje se acredita que essa miscigenação tenha começado em solo português, para ser continuada no Brasil.
O Livro de São Cipriano contém um conjunto de instruções magísticas para curas, demandas, proteções mágicas e exorcismos, técnicas divinatórias, construção de tecnologias mágicas, a descoberta de tesouros, pactos com os espíritos e a descrição hierárquica desses espíritos, encantados diversos, anjos e demônios. Assim como no Grimorium Verum, a Trindade Maioral da Quimbanda, i.e. os três Chefes Maiorais do Inferno, Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth, também são listados em O Livro de São Cipriano como regentes infernais.[2] A própria ideia de Maioral como o Sanctum Regum, o ambiente mágico da Quimbanda,[3] deriva de O Livro de São Cipriano antes mesmo das descrições que lhe deu Eliphas Levi (1810-1875). Em O Livro de São Cipriano o Sanctum Regum é o ambiente mágico onde todo ato de magia é realizável: O verdadeiro Sanctum Regnum da Grande Clavícula de Salomão tem suma importância, seja para adquirir tesouros, possuir a mulher desejada, descobrir os segredos mais ocultos, obter invisibilidade, viajar para qualquer ponto que se deseja, abrir todas as fechaduras, enfim, para realizar toda classe de maravilhas.[4] Quer dizer, o ambiente mágico através do qual se dá o milagre da magia, a taumaturgia.
No primeiro volume do Daemonium eu menciono que, universalmente, estes poderes ou o poder de controlá-los vem do conhecimento & conversação com o espírito tutelar. Na tradição cipriânica o espírito tutelar é o diabo pessoal, na Quimbanda é o Exu tutelar, o agente mágico universal que atua dentro do Sanctum Regum, o ambiente mágico da Quimbanda, o Corpo de Maioral.
O Livro de São Cipriano goza de muita popularidade até hoje. Além de ser creditado como um manual de feitiçaria ibérica popular, bebendo muito dos grimórios eruditos medievais e modernos populares, ele também possui qualidades mágicas intríncecas, como a de ser vir como um talismã. Antigas parteiras o utilizavam próximo às mulheres grávidas na hora do parto como um amuleto de saúde, pois acreditavam trazer benefícios curadores em momentos difíceis do parto; ele também era colocado nos berços dos bebês, tanto para trazer proteção espiritual quanto para fazê-los mamar. O que conferia este poder talismânico a O Livro de São Cipriano era a presença, segundo consta os depoimentos inquisitórios, da Oração de São Cipriano, extensivamente famosa na tradição cipriânica e ostensivamente usada em muitas religiões afro-diaspóricas nas Américas.[5]
Eu menciono no Daemonium que a espinha dorsal que dá estrutura as diversas edições de O Livro de São Cipriano são as suas poderosas orações de exorcismo. A Oração de São Cipriano narra a história de um feiticeiro pagão que se rende aos dogmas da Igreja, arrependido de seus pecados. Este feiticeiro, o próprio São Cipriano, é apresentado em três histórias fictícias que datam do Séc. IV: A Confissão de São Cipriano, A Conversão de São Cipriano e O Martírio de São Cipriano. Como pus ênfase no livro, essas histórias nasceram para combater a prática da feitiçaria na Antiguidade, mas ao invés disso alimentaram toda uma tradição de feiticeiros necrtomantes.
No segundo volume do Daemonium eu falo do pacto com o Espírito do Livro de São Cipriano, apresentando-o como o grigori, i.e. o guardião gregário da tradição cipriânica. O Livro de São Cipriano, como explico no Daemonium, é um livro vivo. Ele alimenta não só uma corrente mágica de feitiçaria, mas o próprio trabalho magístico de muitos feiticeiros. Como um livro vivo, ele se transforma. Se entre os Sécs. XV e XVII ele aparece associado a curas diversas e o afastamento de forças malignas, no Séc. XVIII ele é associado a caça de tesouros perdidos, quando ganha grande proeminência.[6] No Séc. XIX é quando O Livro de São Cipriano começa a aparecer com as inúmeras edições e versões que conhecemos hoje, popularizando-se principalmente no Brasil. São Cipriano é o Santo dos bruxos e feiticeiros, considerado o próprio patrono e protetor da prática da feitiçaria.
Não há motivos para escrever aqui tudo o que falei no segundo volume do Daemonium. Construo esse opúsculo em detrimento das perguntas dos novos seguidores, que desconhecem minha literatura sobre São Cipriano, onde demonstro sua grande importância na identidade mágica brasileira e nos alicerces que proporcionaram a Quimbanda moderna.
Táta Nganga Kamuxinzela
Cova de Cipriano Feiticeiro
Consultas, iniciações e trabalhos, WhatsApp: 24999320636.
Acesse: www.quimbandanago.com/
NOTAS: [1] José Vieira Leitão. «Rosa é a Dama de Ouros; o José é o Rei de Ouros»: O Livro de São Cipriano na obra de Camilo Castelo Branco. Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Manuscriuto em PDF. [2] Jonas Sufurino. O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro. Via Sestra, 2019, pp. 133. [3] Veja Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023. Veja do mesmo autor o artigo Quimbanda: a Goécia Tradicional Brasileira. Em Revista Nganga, No. 10. [4] Jonas Sufurino. O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro. Via Sestra, 2019, pp. 147. [5] José Vieira Leitão. «Rosa é a Dama de Ouros; o José é o Rei de Ouros»: O Livro de São Cipriano na obra de Camilo Castelo Branco. Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Manuscriuto em PDF. [6] José Vieira Leitão. «Rosa é a Dama de Ouros; o José é o Rei de Ouros»: O Livro de São Cipriano na obra de Camilo Castelo Branco. Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Manuscriuto em PDF.