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O Batismo na Quimbanda Nàgô



Introdução


Quimbanda é tradição! Tradição se perpetua através da transmissão. Nós entendemos essa transmissão iniciática em quantitativos energéticos; quer dizer, um processo que ocorre entre o mestre e o discípulo de Quimbanda, que recebe no curso da iniciação[1] uma potente descarga de força vital (moyó). Essa descarga de força vital carrega a alma do discípulo, potencializando suas virtudes inatas; que doravante deve zelar por essa carga recebida, desenvolvê-la e no futuro transmiti-la. O mestre carrega a alma do discípulo com moyó através de ritos iniciáticos propiciatórios que envolvem limpezas, purificações, energizações, consagrações, oferendas diversas e sacrifícios; instrução acerca de cosmovisão e fundamentação mágica, acompanhamento espiritual e aconselhamentos.


A cerimônia do batismo é o rito introdutório na Quimbanda Nàgô. Ele marca (no sentido de timbrar) a alma do iniciante com a chancela mágica da Quimbanda. A partir daquele momento o iniciante torna-se um batizado de Quimbanda que experimentará inicialmente a força mágica da tradição que penetrou na sua alma através da cerimônia do batismo. O entendimento desse fundamento, a recepção da força mágica, o conhecimento dela e a intenção de aumentá-la, manipulá-la e projetá-la, é um dos pontos de partida que dá o pontapé inicial na jornada de um kimbanda. Entender um pouco da ideia de força vital entre os bantos poderá trazer uma luz sobre esse tema na jornada do kimbanda recém batizado.


A força vital


O conceito, a ideia de força vital, manipulação, projeção ou transformação da energia, é um tema caro ao kimbanda, presente no seu dia-a-dia, em todas as questões, seculares ou espirituais, como herança da cultura banto. Efetivamente, existe a busca constante pela integração do sagrado e do profano, realidades indistinguíveis, conectadas permanentemente por uma rede sutil de energia, a força vital. Nesse caminho a existência humana é mensurada em quantitativos energéticos através do dinamismo que existe entre todas as coisas, manifesto na própria ideia de vida. A vida é a encruzilhada entre as duas humanidades, os vivos e os mortos em um permanente fluxo de possibilidades.


O relicário mais precioso e mais sagrado para os bantos é a vida. É através da vida que uma encruzilhada de poder se abre e converge dois mundos em um mesmo ponto, o mundo visível e o mundo invisível. No permanente fluxo de força vital que abrange todas as coisas, a vida é o eixo de toda cosmovisão, porque é nela que esses dois mundos estão unidos em constante fluxo e refluxo através de intercâmbios permanentes. Os mundos visível e invisível são uma coisa só, um sendo o prolongamento do outro no tempo e espaço. Por esse motivo, todas as relações e interações diversificadas do mundo visível são mensuradas a partir dos princípios do mundo invisível. Esses dois mundos formam o escopo total do universo cuja estrutura subjacente é a força vital que o anima.


Assim como os vasos sanguíneos levam a vida a todas as partes e órgãos do organismo humano, de igual modo à força vital anima todas as coisas, espíritos diversos (gênios, encantados etc.), antepassados, animais, plantas e minerais, como vasos sanguíneos sutis que formam uma enorme teia (rede) que a tudo permeia. Por conta disso os bantos se encontram em permanente comunhão com todo o universo que é ao mesmo tempo animado e de caráter sagrado. Não há, portanto, uma divisão aparente entre o sagrado e o profano; todos os seres e todas as forças estão conectados em um sistema harmônico de fluxo e refluxo vital. Como o mundo visível (ou material) é penetrado pelo mundo invisível (ou espiritual), nasce a consciência de que tudo é sagrado e de que nada acontece por acaso.[2] Toda a realidade para os bantos é sacralizada a todo instante; todas as questões são interpretadas dentro de uma relação profundamente religiosa com o universo. A força vital, portanto, vivifica, harmoniza e ordena o universo inteiro.


Em cada ser humano a força vital se manifesta como a sua própria vida, de muitas formas distintas: pelas palavras, pelas ações do corpo, pela saliva, pelo sangue, pelos órgãos e partes do corpo, o que inclui unhas e cabelo, pelo olhar ou pelo toque. É através disso tudo dentro de um sistema iniciatório que o táta-nganga transmite a força mágica da Quimbanda ao iniciante recém batizado. E é porque o homem é a criatura superior a outros seres criados, os animais, vegetais e minerais, que ele tem poder e autoridade para conjurar suas forças e manipulá-las. Os bantos entendem que as forças mágicas dos três reinos só existem para assistir o homem, pelo fato dele ser superior a todas elas. Isso explica, tecnicamente, a mecânica dos ritos propiciatórios sacrificiais.


A força vital contida nos três reinos, animal, vegetal e mineral alimenta e prolonga a vida, quer dizer, ela serve ao homem aumentando a sua vitalidade. Quando um kimbanda se alimenta de um animal sacrificado, ele se apropria de sua força vital. Essa mesma dinâmica aplica-se as oferendas e sacrifícios aos espíritos, que se vitalizam com a força vital das oferendas. Observe esse fluxo dinâmico de interação da força vital que provê vitalidade a vivos, mortos e outras criaturas espirituais. Os bantos compreendem a vida presente em tudo; eles creem tão veementemente no poder das pedras, dos metais e das plantas, que são necessários ritos apropriados para conjurar e domar seus espíritos. Todo esse conhecimento arcano acerca da força vital, seu aumento, manipulação e projeção, sobrevive na Quimbanda.


O treinamento espiritual


Como, efetivamente, os noviços aprendem a manipular o moyó? Através de práticas psiúrgicas de desenvolvimento mediúnico e de técnicas de magia e feitiçaria. Vamos a definições práticas:


Psicurgia: arte e ciência de causar mudança na natureza por meio da vontade. A psicurgia envolve o unidirecionamento das forças mentais, o que requer uma vontade firme e concentrada. Inúmeros recursos psiúrgicos podem ser utilizados, dependendo de ajustes pessoais no desenvolvimento mediúnico, para aprimorar as capacidades mediúnicas. Visualizações criativas, meditação, exercícios de concentração e transe, respiração e contrações musculares etc. voltados para cosmovisão de Quimbanda auxiliam no desenvolvimento, controle e na projeção da vontade.


Magia: arte e ciência de causar mudança na natureza por meio da intervenção de espíritos tutelares. Magia é comunicação: chave e acesso. Através de determinadas chaves mágicas o mago tem acesso a planos, subplanos e todas as criaturas espirituais que neles habitam. Por meio da influência dos diversos espíritos com os quais o mago sela compromissos e pactos, é possível causar mudança na natureza. A utilização das chaves e o acesso às diversas criaturas espirituais depende da manipulação precisa da força vital.


Feitiçaria é a ciência e a arte de manipular a força vital através de bases materiais. Por meio da feitiçaria o kimbanda movimenta a força mágica necessária para criar portais e interfaces capazes de conectar planos e acessar espíritos. O noviço recém batizado é encorajado a crescer e é instruído por meio de técnicas de psicurgia, magia e feitiçaria.


O resgate da ancestralidade


Aqui chegamos ao coração desse ensaio, porque o batismo não encerra apenas o arcano da transmissão da força mágica da Quimbanda, mas também o arcano do resgate da ancestralidade. Até aqui nós falamos do noviço que se torna um batizado de Quimbanda. Mas o que é o batismo em relação ao Exu tutelar? Para falarmos disso devemos nos debruçar sobre três tópicos: i. o que efetivamente é o batismo; ii. como um ancestral torna-se um Exu; iii. as tendências individuais que conectam o kimbanda ao Exu tutelar.


O batismo é a cerimônia de entrada que dá oportunidade ao ancestral que acompanha o noviço entrar para o Reinado do Chefe Império Maioral, a tradição de Quimbanda. Este ancestral torna-se, a partir dessa cerimônia onde ele recebe seu primeiro corte (sacrifício),[3] um Exu batizado. Inicia-se a jornada de ambos na Quimbanda, o noviço e seu ancestral. A evolução de um está diretamente conectada a evolução do outro dentro do culto: na medida em que o noviço torna-se um mestre da Quimbanda, o Exu batizado torna-se um táta.


Para se tornar um Exu efetivamente, o ancestral que acompanha o noviço por motivos diversos[4] deve ser aceito pelo Chefe Império Maioral, o Diabo e dele receber a chancela de Exu;[5] a partir desse momento, como um Exu batizado,[6] ele começa a trabalhar em acordo aos espíritos da Banda ao qual está se vinculando, aprendendo a operar dentro daquela linha de trabalho. Caso o noviço não tenha uma ancestralidade que o acompanhe ou que seja compatível com a Quimbanda, então outro espírito é buscado nos Reinos para acompanhá-lo.[7]


Para tal é levada em consideração as aptidões, inclinações e tendências individuais de cada noviço que chega. Ele pode ter inclinações profundas a prática da feitiçaria, então é buscado um espírito nos Reinos da Quimbanda que tenha sido um bruxo, feiticeiro, mago ou xamã para trabalhar com o noviço na Quimbanda, tornando-se um Exu a partir daí.



Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite



NOTAS: [1] Quer dizer, a jornada de um iniciante que passa pelo batismo na Quimbanda até sua feitura, quando se torna um Mestre (táta-nganga). [2] De igual modo é o próprio conceito de tempo para os bantos, muito distinto das concepções ocidentais. Não existe um tempo sagrado como ocasiões especiais para realizar ritos ou sacrifícios; todo tempo é sagrado, porque ele é animado pela presença permanente da força vital. Assim como a vida é a encruzilhada que converge o material e o espiritual, os vivos e os mortos, o tempo é a encruzilhada que converge o passado e o futura no eterno presente. O tempo, assim como a própria força vital, é cíclico: estações, lunações, mênstruos, vazantes, cheias, fluxos e refluxos, sem início ou fim. A visão global que os bantos têm da vida é a mesma pela qual concebem o tempo. [3] É somente após esse primeiro sacrifício que o ancestral é aceito, efetivamente, como um Exu na Quimbanda. Antes disso ele não estava dentro dos domínios e Reinado do Chefe Império Maioral, mesmo que tenha se autointitulado Exu. [4] Por qualquer questão o noviço pode ser acompanhado por esse espírito ancestral. É prerrogativa, no entanto, que ele já possua condições efetivas para tornar-se um Exu. Os Exus e Pombagiras da Quimbanda buscam as almas que possuem os requisitos para representar e aumentar a armada do Chefe Império Maioral. [5] Correntemente atribui-se a ancestralidade do noviço que chega na Quimbanda ao Reino das Almas. [6] Exu batizado, tecnicamente, é aquele que foi recebido na Quimbanda, mas ainda não é coroado, ocasião em que recebe um assentamento definitivo. Exus batizados não têm assentamento! [7] Correntemente atribui-se esse espírito conectado a qualquer outro Reino da Quimbanda.

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