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Magia na Era das Trevas


Nota: Esse texto é um excerto do artigo História Concisa da Magia a ser em breve publicado na Revista Nganga. O objetivo do texto é dar continuidade ao estudo da incursão diabólica no Brasil, período quando a magia demoníaca dos grimórios se miscigenou a Quimbanda.




Era das Trevas: período que se inicia com o colapso do Império Romano e o início da Idade Média, entre 476 e 1000 d.C. Este período é de interesse para nós que buscamos neste ensaio por uma análise da história da magia no medievo com foco na tradição dos grimórios: foi na Era das Trevas com a descoberta de antigos manuscritos herméticos preservados por mulçumanos e que chegaram as mãos de clérigos que se inicia a síntese que encontramos nos grimórios. No seu pano de fundo histórico o Dr. Stephen Skinner diz: Roma perde o Egito para os gregos novamente quatro anos depois da destruição do Serapeu, mas desta vez para os cristãos gregos, não para os pagãos. A terrível morte de Hipátia, a última líder da Academia Platônica de Alexandria, através das mãos dos cristãos em 415 d.C., ajudou a selar o destino do paganismo e do modo clássico de pensar grego em Alexandria. Finalmente, a perda do Egito para o Islã em 636 d.C. resultou na migração (que começou alguns anos antes) dos gregos (com sua cultura, práticas mágicas e manuscritos) para o norte de Constantinopla, a capital do Império Bizantino.[1]


A Era das Trevas comporta, dessa maneira, a fuga do pensamento mágico e filosófico grego de Alexandria para Constantinopla, onde antigos manuscritos herméticos de magia e filosofia foram preservados e explorados profundamente pelos mulçumanos. No fim da Era das Trevas e início da Idade Média essa sabedoria mágica greco-egípcia volta a ser reintroduzida no Ocidente através das conexões estabelecidas com emigrantes mulçumanos, o que se intensificou no período das Cruzadas. Sobre essa migração e transferência do conhecimento mágico dos pagãos para os cristãos o Dr. Stephen Skinner diz: O foco cultural permanecia grego, mas agora ele havia sido transferido dos pagãos gregos para os cristãos, em linha com a movimentação geográfica de Alexandria para o norte de Constantinopla, a capital do império ortodoxo oriental. A perda em 636 d.C. do controle do Egito pelos invasores mulçumanos cortou as raízes da tradição mágica. As práticas mágicas, as quais agora possuíam alguma influência judaica e muita influência cristã misturadas, começou a ser referida como magia salomônica, ou em grego Solomōnikē. O [grimório] mais conhecido [desse período] foi o Hygromanteia ou Tratado Mágico de Salomão.[2]


A derrocada da cultura romana, que constituía um amálgama eclética das culturas grega, egípcia e outras, com sua estrutura política, educação clássica e filosofia, levou o Ocidente ao seu período mais escasso e árido. Todo o conhecimento do Mundo Antigo em todas as áreas desapareceu num piscar de olhos. A única instituição que permaneceu de pé nesse período no Ocidente foi a Igreja Católica Romana, que se estabeleceu como pilar modular da cultura ocidental. Esse foi o período de maior crescimento e expansão da fé católica, porque a Igreja passou a exercer a função de Estado, e a partir dela a educação, a gerência moral social, religião e cultura reestruturaram o Ocidente.[3] Lisiewski diz: a Igreja Cristã tornou-se firmemente estabelecida com a queda de Roma. As pessoas não tinham mais a quem recorrer como a autoridade de governo que eles necessitavam diariamente. Com esse crescente estrangulamento em suas vidas, a Igreja Cristã logo reconheceu que sua doutrina deveria ser estritamente reforçada. Primeiro, entre os próprios clérigos, e através deles a fé. De primordial importância era a absoluta eliminação de qualquer coisa que fosse pagã.[4]


Lisiewski menciona que neste período o homem levantava pela manhã sem saber se iria ver o pôr do Sol. Era uma época de trevas porque foi caracterizada por uma completa barbárie humana e a falta de conhecimento e educação que dão coesão a uma cultura. Não havia livros ou qualquer conhecimento disponíveis. O autor diz: Se você fazia parte do rebanho da fé – fosse você àquele que administrava a Palavra de Deus ou um daqueles que eram administrados – seu único socorro e saída para escapar [da situação tenebrosa de viver naquela época] é àquela que ainda apavora homens e mulheres até hoje: a cova fria e silenciosa. Imagine nascer num mundo assim.[5]


O autor continua a descrever as dificuldades tanto de clérigos quanto de leigos para viver e adquirir conhecimento e realizações na vida no início desse período. Ele especula que somente àqueles com muitas posses, clérigos ou leigos, poderiam adquirir antigos manuscritos gregos e latinos preservados e copiados secretamente, herméticos e clássicos, e estudá-los a soma de valores altíssimos. Com o passar do tempo esses manuscritos começaram a aparecer com mais frequência, às vezes apenas partes deles ou até uma mistura de textos. Supõe-se que esses manuscritos nas mãos de clérigos copistas começaram a influenciar outros clérigos que se encontravam secretamente para estudá-los e compará-los. Dessas reuniões secretas começaram a nascer os primeiros rascunhos dos grimórios.


Richard Kieckhefer diz que na Idade Média certas formas de magia foram incrivelmente assimiladas à liturgia e cada vez mais escritas, sendo que o ato mágico é à escrita, ou a observação de um rito cujos detalhes estão consagrados em um texto. Este desenvolvimento certamente deve muito à propagação da alfabetização entre os leigos, mas mais ainda por causa da prática da magia entre os clérigos, particularmente àqueles das franjas da elite clerical. Evidências judiciais e anedóticas sugerem explicitamente que a magia demoníaca, chamada «nigromancia» ou «necromancia», foi largamente domínio dos sacerdotes, talvez especialmente àqueles sem emprego paroquial em tempo integral, assim como monges ordenados recebidos em ordens menores. Foi dentro deste contexto que o livro de magia seria mais naturalmente percebido como um livro mágico, compartilhando a numinosidade dos ritos que prescreve.[6]


Aos rituais da Igreja, fundamentalmente a liturgia da missa, eram creditados poderes miraculosos. Então foi conveniente na formulação dos primeiros grimórios de magia demoníaca trazer para prática da magia ritual elementos mágicos fundamentais retirados da liturgia católica, bem como passagens pontuais do Novo Testamento. E é exatamente essa mistura que provê aos grimórios o seu poder, tornando-os condição de livros mágicos, relicários sagrados de poder. Richard Kieckhefer continua: Qualquer livro de rituais serve como ponto de contato entre textos sagrados (autoridades permanentes de poder mágico) e a sua execução (que utiliza esse poder para fins específicos). O livro em si, como um relicário litúrgico ou objeto sagrado, é consagrado; quando uma fórmula dele é lida, o poder do texto é liberado e aumentado pela sacralidade do livro que está sendo lido. Um livro de magia então é importante não apenas porque é fonte de informação sobre a prática mágica [...], mas também porque se trata de um objeto mágico.[7]


Por serem objetos mágicos, os grimórios eram também assentamentos de poder para os demônios cujas suas fórmulas estavam endereçadas. Inúmeras descrições espalhadas nos livros acerca da história da magia como este de Richard Kieckhefer citado acima relatam que quando livros mágicos eram queimados toda sorte de efeitos paranormais ocorria. O autor menciona: A queimada [de livros mágicos] servia como um exorcismo: cada uma de suas páginas estavam infectadas por demônios, que precisavam ser banidos.[8]


Uma vez que os livros de magia, os grimórios em circulação entre os clérigos, carregavam tanto poder e alojavam tantos demônios, um amplo esforço iniciado com Papa João XXII para controlar a epidemia mágica de livros de magia começou. Benedek Láng acrescenta: A magia pode estar sujeita a um livro, e um livro pode ser um objeto mágico. Livros não são apenas fonte de estudos secretos e conhecimento arcano; a sua existência física também é considerada um objeto mágico, amuleto, ou relíquia e, consequentemente, uma entidade perigosa por si mesma. Eles podem funcionar como instrumentos de poder, possuindo habilidades especiais de proteção, ajuda, instrução, ou até enganar seus leitores. Subsequentemente, possuir livros mágicos era crime.[9]


Dois são os fatores pelo ímpeto interesse nesses manuscritos mágicos naquele período: i. a escassez de absolutamente tudo, o que tornava a vida deveras difícil, e o que levou uma busca pelo sobrenatural na intenção de superação das dificuldades da vida; ii. o crescente interesse na persona do Diabo. Foi neste período que o Diabo começou a ganhar contornos mais palpáveis na vida das pessoas pelo desenvolvimento de concepções teológicas acerca de sua influência no mundo. A antiga Teoria do Resgate de Deus das almas em posse do Diabo havia sito derrotada e era patente que o Diabo e seus demônios não estavam presos no Inferno, mas livres no ar tenebroso. Quer dizer, embora Cristo tenha derrotado o Diabo na Cruz, ainda sim ele permanecia livre para desencaminhar os filhos da Igreja. O Papa João XXII, que acreditava ter sido vítima de magia demoníaca por meio de um bispo chamado Hugo Gérald a partir de uma efígie de cera, em 1332 diz: de fato, os condenados – isto é, os demônios – não poderiam nos tentar se estivessem encerrados no Inferno. É por isso que não se pode dizer que eles residem no Inferno, mas de fato estão em toda zona do ar tenebroso.[10] No fim da Era das Trevas e início da Idade Média o Diabo e seus demônios foram diretamente associados à prática da magia e da feitiçaria. Em uma carta escrita pelo Cardeal Guilherme Pedro Godin de 22 de agosto de 1320 e enviada em nome do Papa João XXII aos inquisidores João de Beaune e Bernardo Gui, se lê: Nosso santíssimo pai e mestre, Senhor João XXII deseja ardentemente banir do meio da Casa de Deus os que lançam feitiços malignos e matam o rebanho do Senhor.[11] Aqui começa de fato a perseguição medieval a magia.


A perseguição à magia não se limitava apenas aos grimórios medievais, mas qualquer tipo de literatura, grega ou latina. Lisiewski menciona que entre os trabalhos proibidos estavam o escasso corpo de textos herméticos, ironicamente utilizados pelos antigos acadêmicos da igreja para pensar sua própria teologia. Sem dúvida foi devido a essa escassez, bem como da necessidade humana de criar sempre uma nova moda, que os antigos grimórios nasceram. Contudo, foram os clérigos descontentes, também convencidos da santidade da igreja e de seu poder celestial, que começaram a tecer gramáticas de magia a partir de alguns manuscritos herméticos disponíveis, produzindo seus próprios textos mágicos, baseados fundamentalmente na liturgia da igreja e excertos da execução da missa católica. Tais como o Livro Jurado de Honório, o Mago, reputado a escrita do Papa Honório, que é um ponto em questão. Este grimório pode ser considerado a gramática mais antiga de um sistema de magia baseado no cristianismo. [...] o Livro Jurado é essencialmente uma estrutura de evocação. Ele não dá, por exemplo, direcionamento para a preparação e a consagração das armas e materiais utilizados no ritual. Ao invés [...] assume-se que o praticante que o utiliza possui algum tipo de treinamento e educação eclesiástica, e portanto já conhece o preparo de todos os impedimentos requeridos. Novamente, isso indica uma base cristã na magia que evoluiu do sistema hermético. [...] No fim, os grimórios como os conhecemos hoje, são fundamentalmente de origem cristã, baseados sobre as ideias espirituais e cerimônias da igreja, muito embora posteriormente influências seculares tenham importado para estes textos a Kabbalah Hebraica, e expandi-los de maneira mais familiar a mente europeia ocidental.[12]


Táta Nganga Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro



NOTAS: [1] Stephen Skinner. Techniques of Samomonic Magic (Golden Hoard Press, 2017). [2] Ibidem. [3] Veja Christopher Dawson. Criação do Ocidente: A Religião e Civilização Medieval (É Realizações, 2016). [4] Joseph C. Lisiewski, Ph.D. Ceremonial Magic & the Power of Evocation (Falcon Press, 2009). [5] Joseph C. Lisiewski, Ph.D. Ceremonial Magic & the Power of Evocation (Falcon Press, 2009). [6] Richard Kieckhefer. Forbidden Rites (Penn State Press, 2016). [7] Ibidem. [8] Ibidem. [9] Benedek Láng. Unlocked Books (Penn State Press, 2008). [10] Citação em Philip C. Almond. O Diabo: uma Biografia (Vozes, 2021). [11] Ibidem. [12] Joseph C. Lisiewski, Ph.D. Ceremonial Magic & the Power of Evocation (Falcon Press, 2009).

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