Incorporação e Possessão Divina

Eu decidi tecer algumas palavras sobre a incorporação a partir do acompanhamento das experiências de um kimbanda iniciado em nossa família. Minha definição pessoal sobre o tema é: a incorporação é como um raio da divindade que penetra a alma, oblitera as amarras do intelecto, transcende as dificuldades naturais do corpo e solapa as restrições do comportamento. Essa definição é baseada na minha experiência, porque as considerações modernas sobre o tema são bem infantis. A minha experiência mediúnica não se enquadra em nenhuma das categorias convencionalmente estabelecidas e aceitas sobre incorporação. Então eu me refugio no conhecimento arcano da Antiguidade, onde consigo vislumbrar considerações muito mais profundas sobre esse que é um dos temas mais importantes da Cabalá Crioula, além dos apontamentos dos mais velhos na nossa família.
No Fedro (265a) Platão distingue dois tipos de loucura: àquela derivada da doença humana e àquela derivada da liberação divina do comportamento habitualmente aceito. Veja que isso está em sincronia com minha definição de que a incorporação solapa as restrições do comportamento. Ao argumentar sobre a possessão divina, nome antigo que os teurgos davam ao fenômeno da incorporação, Jâmblico, filósofo e teurgo ativo no Séc. IV d.C., retoma essa ideia platônica rejeitada por Porfírio, também filósofo e seu professor, cujas ideias foram quase que totalmente plagiadas por Santo Agostinho e outros teólogos da Patrística.
Platão também diz (244d) que a divinação (oraculação profética) é o resultado da possessão e intervenção divina (dos deuses), diferente da loucura que advém da doença humana. Jâmblico argumenta que o fenômeno da incorporação é um movimento do divino que aplaca o terreno, quando a verdadeira e genuína divinação é estabelecida. Assim como em Delfos as sacerdotisas de Apolo eram possuídas pelo poder da divindade e oraculavam profecias, os médiuns de Preto-Velhos, Caboclos e Exus têm exercido a mesma função, por isso são tão procurados nos terreiros e templos de Cabalá Crioula (Umbanda e Quimbanda).
A incorporação, desde tempos imemoriais, tem sido eleita como o elemento catapultor da alma em direção ao seu aperfeiçoamento. Isso significa que o êxtase, o transe, melhora o indivíduo como ser humano, ajusta seus erros e tropeços. Se assim não faz, então se trata de um tipo de loucura. Ao descrever a possessão divina Jâmblico diz que a alma é envelopada pelo sagrado, recebendo nela virtudes sagradas, o que corrige a natureza desfragmentada da alma. No processo e movimento de encarnação na matéria, o Reino da Geração, a alma é desfragmentada completamente. Esse mesmo fenômeno é descrito por inúmeras culturas xamânicas, por esse motivo o xamã se esforça em recolher e reagrupar a alma de seus pacientes. Isso também está em acordo com a cultura yorùbá, que explica este processo de desfragmentação da alma através dos odùs ou caminhos que ela toma no curso de sua jornada até a matéria. Através da possessão divina ou incorporação sabiamente orientada, portanto, é possível reestabelecer a integridade total da alma.
A mecânica é no mínimo lógica: a incorporação permite que alma participe do sagrado, participe do àṣẹ das divindades. Isso permite que a alma se UNA a elas. Então a alma compartilha do divino na divindade, tornando-se divina. A alma se enriquece do divino. Quando eu defino que a incorporação transcende as dificuldades naturais do corpo, isto está em sincronia com a descrição do fenômeno em varias culturas da Antiguidade. Jâmblico diz que a possessão divina deixa o corpo insensível ao fogo ou a perfurações porque a alma e o corpo não vivem mais uma vida humana ou animal, mas participam de uma vida divina da qual são inspirados e perfeitamente possuídos pelos deuses. (De Mysteriis, 110:5–111:2). Jâmblico explica que a alma no curso do ritual atinge um estado de transe e receptividade tão sensível que assume o poder da divindade e nele, torna-se outra coisa além de si mesma. Ele diz: A alma está inteiramente separada daquelas coisas que a ligam ao mundo gerado. Ela voa do inferior e troca uma vida por outra, tendo abandonado inteiramente sua existência anterior. (De Mysteriis, 270:15–111:2). Isso é o que os hermetistas modernos chamaram de assunção de forma divina.
E essa assunção de forma divina, que deve ocorrer no ápice extático da invocação, trata-se do que nós chamamos de incorporação, e para um kimbanda o processo de incorporação não é o que sabemos, ou o pensamento que nos une as divindades da tradição etc., mas a nossa capacidade de entrar em estados de receptividade do não saber, quando o ego é completamente obliterado da experiência extática. Isso é o que Cornélio Agrippa em seu Três Livros de Filosofia Oculta chama de a mais perfeita invocação.[1]
O kimbanda poderá por si mesmo, sendo ele honesto consigo mesmo, avaliar a salubridade de seu exercício mediúnico, assim como a qualidade de seus sacrifícios. Porque a incorporação, a divinação e o sacrifício são três ferramentas psico-mágicas: Em um primeiro momento essas ferramentas melhoram as percepções e interações psíquicas. Medos, vícios comportamentais, traumas profundos, mazelas da alma, desequilíbrios emocionais são superados. Em um segundo momento elas ajudam a aplacar a violência da natureza, atenuam as perdas, remediam crises e preparam a alma para uma experiência plena na matéria.
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Cova de Cipriano Feiticeiro
Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite
NOTA: [1] Existe outra abordagem ainda para a prática que se conveniou chamar de assunção de formas divinas que está estreitamente associada ao que Jâmblico denominou de ritos de coleta de luz, onde ocorre um estado de transe que mantém uma porção residual da consciência. Na Cabalá Crioula nós descreveríamos a experiência como uma irradiação (mediúnica) do divino, um estado hipnagógico consciente, mas não ativo, que percebe, mas não analisa ou avalia e, embora seja extenso, não se concentra em objetos específicos nem exerce sua vontade. Esses ritos de coleta de luz eram oraculares, divinatórios, onde eram requeridos estados hipnagógicos conscientes, adequados a receber a gnose extática do divino.