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Exu é Faca!



Exu foi para o inferno de sapato de algodão.

O sapato pegou fogo Exu voltou de pé no chão.

Ponto de Quimbanda


A Quimbanda é magia negra e sua natureza é do mal; Exu de Quimbanda é mau. A Quimbanda é o Culto da Faca; Exu é a Faca. A Quimbanda é do Inferno; Exu é o Diabo e seu domínio é a Matéria. Qualquer estudo genuíno sobre a teologia e cosmovisão da Quimbanda deve levar em consideração: i. a natureza do mal; ii. a inserção da demonologia europeia na cosmovisão e teologia da Quimbanda. O segundo momento da Quimbanda no Brasil foi inaugurado na tradição literária das décadas de 1940 e 1950 com os Exus – da Quimbanda – sendo sincretizados com os demônios listados em dois grimórios do Séc. XVIII, o Grimorium Verum[1] e o Grand Grimoire. Eu utilizo esse termo em itálico porque era muito bem entendido aos antigos tátas do culto que Exus e demônios participam de éteres diferentes, sendo impossível uni-los em um ente sincretizado. Seria uma espécie de aberração teológica! O que possibilita a ação de Exus e demônios atuando em congruência é a criação de uma interface entre os éteres que eles habitam, tecnicamente falando.


O Grimorium Verum influenciou a Quimbanda moderna através de alguma versão italiana, onde são listados três potências-chefes do inferno: Lúcifer, Ashtaroth e Beelzebuth. As edições francesas, mais antigas que as italianas, trazem o demônio Elestor no lugar de Ashtaroth. É nas versões italianas que os sigilos ganham círculos ao redor das assinaturas dos demônios. O grimório é moderno e está dentre àqueles pertencentes à magia tradicional salomônica. Ambas as edições italianas e francesas fazem menção, seja como tributo ou pegando partes da Clavicula Salomonis, a Salomão.[2] O Grand Grimoire também é fiel à magia salomônica tradicional e introduz a prática do sacrifício de um bode e do pacto demoníaco. O texto segue com um diálogo entre Salomão e o demônio Lucifuge Rofocale e envolve um pacto diabólico. É interessante o desenrolar do diálogo que termina com o demônio assinando o pergaminho, não Salomão. No entanto, condicionando Salomão a pagar um tributo em ouro toda primeira segunda feira do mês.[3] Nota-se a fórmula mágica universal do espírito tutelar intrínseca nesse grimório e pacto. Toda essa herança influenciou profundamente o modus operandi da Quimbanda, que desenvolveu a técnica e a tecnologia de acesso e trabalho de Exus operando junto com demônios. Quando duas forças mágicas trabalham em conjunto através de uma interface criada entre seus éteres, elas acabam por se influenciar, apresentando-se combinadas, quer dizer, agindo junto e em sincronia sobre um mesmo objetivo. Por esse motivo, as manifestações de Exu na Quimbanda trazem toda essa influência, tudo o que demônios representam, alinhados a natureza do mal e com características comportamentais diabólicas que se chocam e antagonizam àquelas consideradas do bem, do amor e da caridade. A força da Quimbanda é uma tropa de choque, porque se choca e agride o comportamento moralmente construído por uma sociedade cristianizada.


Seja como for, foi através de Aluízio Fontenelle (1913-1952) que a Quimbanda como a conhecemos hoje se popularizou. Pessoalmente eu insiro a Quimbanda dentro de um movimento moderno que se disseminou com o nome de grimoire revival,[4] que busca uma prática livre dos grimórios mais tradicionais como A Chave de Salomão, o Gimorium Verum e a Magia Sagrada de Abramelin o Mago. Esse último eu fiz considerações profundas em meu livro Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon. Este movimento valoriza a importância do resgate do êxtase e de técnicas xamânicas que estiveram ausentes nos grimórios tradicionais. A Quimbanda, seja por conta de sua teologia demoníaca ou por fundamentação mágica, tem muito a contribuir com esse movimento. Um de seus integrantes, Jake Stratton-Kent, em seu primeiro volume da Encyclopaedia Goetica faz considerações abundantes acerca da influência dos grimórios na Quimbanda. Ele ressalta que a Quimbanda é uma arte de magia para adeptos avançados: [...] há poucas dúvidas de que a Quimbanda tem uma reputação terrível. Certamente não deve ser enganado por alguém mal preparado ou descompromissado em assuntos ocultos. Como a magia goécia, é o privilégio de quem tem experiência real e familiaridade com as tradições em questão.[5] Eu destaquei esse trecho para sairmos dessa introdução e passarmos ao tema principal: Exu é faca!


A Faca é a arma mágica fundamental do kimbanda. A Faca corta, fura e mata. Nas mãos de uma criança, nas mãos de um despreparado, ela pode significar um perigo, primeiro para quem a carrega, segundo, para quem estiver por perto. Uma Faca com fio e potencial de morte nós entregamos nas mãos de homens capazes e competentes em manuseá-la. É por isso que receber uma Faca da Quimbanda é uma honra, porque significa que o adepto tornou-se um guerreiro do Chefe Império Maioral, o Diabo. A Faca nas mãos de um kimbanda torna-se a projeção da força e potência de Exu. Como uma arma mágica, se não adequadamente manuseada, ela poderá ferir profundamente quem ousou levantá-la sem ter autorização ou autoridade espiritual real. Como uma arma, em pacto com o espírito da morte, a Faca é potencial guardiã, provedora de alimento e segurança; e mesmo assim ela machucará quem não souber empunhá-la. Assim é a natureza de Exu, como uma lâmina afiada que cortará qualquer ingênuo ou despreparado ao seu redor.


Existe um movimento romanceando e fantasiando Exu, e isso é pernicioso, porque tem causado danos na carreira mediúnica de muitos buscadores sinceros. Exu herda as características vorazes dos demônios dos grimórios e opera por meio da mecânica e técnica do pacto diabólico; a Quimbanda desenvolveu uma tecnologia adequada ao acesso e trato com os Exus através do qual é possível contatá-los com certa segurança. Assim como Lucifuge Rofocale exigiu um pacto com Salomão que garantia um pagamento mensal em ouro, Exu também cobrará de seu adepto, o pactuante, seu pagamento. Para os incautos nós avisamos: não se chama qualquer Exu na encruzilhada porque você não sabe o diabo que poderá aparecer.


O contato com Exu conecta o adepto a sua vibração, que passa a atuar e a influenciar sua estrutura energética, seus pensamentos, emoções e ações. Se por um lado essa influência energética quebrará correntes de estagnação no interior do adepto levando cura para muitos de seus complexos internos, por outro lado, quando em excesso essa influência pode produzir com o tempo mazelas ou sequelas terríveis. Por esse motivo, na Quimbanda não é exigido que o adepto esteja incorporado o tempo todo com Exu, apenas quando é extremamente necessário ou imprescindível. A Quimbanda desenvolveu portanto o método cuidadoso com Exu, dentro da dinâmica da técnica e do fundamento, não da fé.


Exu tem fome, exu precisa ser saciado! Mesmo sabendo que o òrìṣà Èṣú não é o mesmo que os Exus evocados dentro das práticas de Quimbanda, podemos associar a sua premissa básica: Exu é a Boca que tudo come!


Pacto, força de vontade e FOME! Esses ingredientes podem ser poderosos e perigosos. Por isso, um kimbanda sabe onde mexe, sabe como alimentar Exu, sabe como usar da fala cuidadosa em seu trato e acima de tudo há respeito entre os pares. Nunca prometa o que não pode ser cumprido. Existe uma ideia perniciosa que diz que não se deve pedir a Exu, porque Exu sabe de tudo o que o médium precisa. Mas a verdade é que Exu não está nem aí para o que o médium precisa! Com Exu se assume um pacto. Ele faz a parte dele e o adepto faz a sua!


Ao chamar Exu para sua vida, ao pensar na Quimbanda como uma tradição a ser seguida, primeiro avalie se o seu caminho é a jornada do guerreiro, porque existem caminhos distintos. Se pergunte se você tem a coragem e a honra de caminhar ao lado do espírito da morte e matar para se proteger ou para sobreviver. Porque isso exigirá de você o empunhar proficiente da Faca.


Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite


Revisão de Zelawapanzo



NOTAS: [1] Aluízio Fontenelle, Exu. 1951. A primeira edição em inglês do Grimórium Verum ocorreu somente em 1994. A primeira edição publicada em português é conhecida desde 1997. É difícil saber como o Grimorium Verum chegou às mãos de Fontanelle para elaboração de seu livro. Ele era um ocultista e estudioso. [2] Veja Humberto Maggi, Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020. [3] Ibidem. [4] Veja Aaron Leitch, Secrets of the Magickal Grimoires. Llewellyn Worldwide, 2005. [5] Veja Jason Stratton-Kent, Encyclopaedia Goetica. 2009.

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