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Existe Pai na Quimbanda?



Combater o autoengano é condição básica para combater qualquer tipo de engano. Todas as besteiras que eu critico já foram minhas. Hitler dizia: contra nada somos tão severos como contra os erros que nós abandonamos. Toda besteira que critico eu já acreditei nela e por causa disso eu a entendo, entendo as razões dela.[1]

Convém que o iniciado passe por todas as fases, que são: desejo, perseverança e domínio. A primeira pertence ao noviço, ou seja, o desejo de aprender. A segunda, ao iniciado, que precisa de perseverança para chegar ao fim. A terceira, ao mestre, que é o verdadeiro mago, pois atingiu o domínio absoluto da Arte.[2]



Não existe a ideia de nascimento na Quimbanda como compreendida nos cultos a òrìṣà descendentes da diáspora africana. O noviço ao iniciar-se na Quimbanda não tem o seu orí[3] raspado e catulado,[4] mas seu corpo. A conexão com òrìṣà ocorre por meio do orí no curso da iniciação; a conexão com Exu e Pombagira é por meio do corpo, não da cabeça. Os símbolos e atos sacerdotais de uma iniciação no culto de òrìṣà carregam o fundamento do nascimento como um bebe, o início da caminhada como uma criança e o desenvolvimento espiritual até a vida adulta. Essa hierografia espiritual não pertence a Quimbanda. No Culto de Exu o noviço é iniciado e como um adepto ele é treinado e aprontado, quando se torna efetivamente o regente de um reinado. Então ao invés do símbolo do nascimento espiritual, a Quimbanda adota o símbolo da coroação espiritual. Na Quimbanda o orí não é catulado, mas sim coroado com uma coroa com três pedras preciosas cravadas, seus três Exus tutelares (o casal de frente e o Exu de fundos), conectados a trindade dos Maiorais.


Eu abro esse ensaio com as palavras de Olavo de Carvalho porque elas ilustram que todo mentiroso verdadeiro acredita no engano que ele dissemina e que todo buscador sincero não tem medo de despir-se de um engano. A Quimbanda é uma tradição completamente independente de qualquer ideia ou cosmovisão candomblecista. Eu sempre digo: não mensure a Quimbanda pela régua do Candomblé. Ideias como: i. não se dá coelho para Exu; ii. lugar de Exu é fora de casa; iii. nascimento na Quimbanda; iv. padê de Exu só quente; v. é preciso moralizar a Quimbanda; vi. a Quimbanda não aceita jogo de cartas; vii. ogã (indivíduo que não trabalha com incorporação de Exu ou Pombagira) na Quimbanda etc., uma miríade de equívocos, enganos e mentiras, têm construído uma ideia equivocada da Quimbanda.


A citação de São Cipriano expressa melhor o que acontece na Quimbanda: um indivíduo se interessa pelo Culto de Exu. Ele encontra um mestre que pode lhe colocar em comunicação com seu Exu Tutelar e ensinar-lhe os fundamentos do culto e de sua feitiçaria. Com o tempo ele torna-se um kimbanda aprontado, quer dizer, coroado com a regência espiritual de Exu. De um profano sem nada ele torna-se um mestre vestido com capa, bastão ancestral de autoridade (bengala), faca e chapéu. A incorporação e o transe são requisitos fundamentais para o aprontamento de um mestre. Nós só damos aquilo que temos, mais nada! Apenas um Mestre de Quimbanda que incorpora seu espírito-táta pode transmitir esse àṣẹ e plantá-lo no corpo do noviço, que deverá a partir dali desenvolvê-lo até que se torne um mestre e seu Exu um táta.


Uma pergunta: se somente a ìyálàṣẹ, quer dizer, a mãe de santo detentora e zeladora do àṣẹ, é responsável por transmiti-lo aos ìyàwó (filhos de santo) no curso e procedimentos da iniciação, pois nós só damos aquilo que temos, então por que isso seria diferente na Quimbanda? De outra forma, se o ogã, embora tenha seus cargos de confiança, não tem autoridade de iniciação, para tal ele precisaria de alguém que pudesse trazer a força do òrìṣà, então por que seria diferente na Quimbanda? De igual forma, neste caso específico, na iniciação na Quimbanda apenas um médium que incorpora tem o àṣẹ que se requer para fazer de alguém um iniciado na Quimbanda. Caso contrário, é um engodo, uma falsificação da boa Quimbanda, uma pirataria ilegal e fraudulenta.


O termo táta[5] na Quimbanda é utilizado da mesma maneira que é ainda utilizado nas famílias cabulistas:[6] trata-se de um título do espírito, não do médium. Quem é táta é o Exu tutelar do Mestre de Quimbanda. O mestre ou a mestra na Quimbanda não carrega o título de pai ou mãe, a não ser que seja de forma romântica, não verdadeiramente iniciática. Se o ritual de iniciação não implica nascimento, tão pouco existe a figura do pai ou da mãe para dar nascimento à criança que nasce. O que existe é o mestre ou a mestra de Quimbanda, responsáveis pela iniciação, desenvolvimento, aprontamento e coroamento dos noviços que se tornam adeptos e posteriormente mestres de Quimbanda. O Mestre então, carinhosamente chamado pelo título do seu Exu, quer dizer, táta, faz o papel de hierofante nos mistérios, pois ele conecta o noviço a uma deidade tutelar, um espírito familiar. É muito diferente e muito distante do símbolo hierático e posição sacerdotal de um zelador de òrìṣà.


Esse ensaio é escrito para esclarecer esse equívoco, o de nascimento e o de pai ou mãe na Quimbanda. Quando alguém é iniciado na Quimbanda e queira, por um motivo ou outro, renunciar a família em que ele foi iniciado, basta procurar outra família, refundamentar sua prática em acordo a essa nova família, e seguir seu caminho. Na Quimbanda, simbolicamente vamos dizer, o adepto não deixa seu orí no terreiro! Quimbanda é liberdade e tem sido difícil fazer isso ser compreendido de forma profunda e fundamentada. Mas vamos seguindo na luta.


Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite



NOTAS: [1] Transcrição de Olavo de Carvalho em aula do COF. [2] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017. [3] O òrìṣà ou divindade pessoal; literalmente, cabeça. [4] Cortado, raspado e pintado. [5] Termo multilinguístico (quimbundo, quicongo etc.) que significa pai. Entre os bantos trata-se de uma figura hierofântica superior, título dado a um grande sacerdote. Veja Nei Lopes, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. Selo Negro, 2011. Nos Candomblés bantos táta é um título dado a vários ofícios sacerdotais. Veja Ornato J. Silva, Iniciação de Muzenza nos Cultos Bantos. Pallas, 1998. [6] A Cabula foi um culto secreto banto afro-brasileiro sincretizado com espiritismo, catolicismo e pequeninas doses de influência maçônica e hermética. Apareceu primeiro no Espírito Santo até chegar no fim do Séc. XIX no Rio de Janeiro para se tornar a precursora da Macumba, Umbanda e Quimbanda. Na Cabula os ancestrais convocados pelo sacerdote da mesa, o embanda, eram os tátas. É essa a tradição que é guardada na Quimbanda como um relicário ancestral: táta é um título de hierarquia espiritual dada ao espírito, não ao médium.

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