Em defesa de Cipriano Feiticeiro

Nota: Esse texto é uma coleção de ideias que serão encontradas em meu livro ainda em construção, O Espírito de São Cipriano.

Desde que comecei a divulgar minha admiração e conexão espiritual com São Cipriano ou Cipriano Feiticeiro[1] como carinhosamente me refiro a ele, passei a receber indagações confusas acerca do mito que envolve sua figura no imaginário popular. Para muitos São Cipriano é conversa fiada, como me escreveu um leitor. Ele não está errado se levarmos em consideração que São Cipriano é uma lenda, um folclore da tradição oculta da magia, mas que, mesmo sendo mito, é carregado de pérolas mágicas fidedignas que alimentam a busca de quem tem um olhar mais profundo. Humberto Maggi resume assim:
Cipriano deveria, em princípio, ser entendido como um guia para aquela experiência maravilhosa quando o feiticeiro finalmente alcança o conhecimento e conversação com seu espírito patrono.[2]
Eu estou escrevendo um trabalho intitulado O Espírito de São Cipriano. Trata-se de uma introdução a tradição cipriânica da magia e sua influência na Quimbanda brasileira. O objetivo e tema deste trabalho é esclarecer com riqueza de detalhes a ideia central da passagem acima citada e como ela está inserida no coração da Quimbanda. Desde os primórdios da magia os magos e feiticeiros buscam estabelecer pactos, alianças e compromissos com espíritos na finalidade de refinarem a sua arte. O mito moderno que representa essa busca fundamental e universal dos magos de todos os tempos e lugares é o que se conveniou chamar de Conhecimento & a Conversação com o Sagrado Anjo Guardião, um termo escolhido e popularizado por Aleister Crowley que, para muitos, trata-se do pai da magia moderna. Essa fase moderna deste arcano antigo da magia tem como fonte o sistema de magia sagrada delineado no Livro da Magia sagrada de Abramelin, o Mago. Então a ideia moderna que os magos têm de um espírito patrono é colorida por uma cosmovisão mística neoplatônica-cristã. A magia de Abramelin é, em verdade, uma prática mística de conhecimento & conversação com o Sagrado Anjo Guardião; no entanto, ocultamente seu objetivo fundamental é mágico: obter poder de magia e auxílio espiritual de espíritos demoníacos; isso alinha o conceito de conhecimento & conversação a uma herança muito anterior a Abramelin. Herdando as concepções religiosas gregas acerca do daimon, a ideia do paredros na feitiçaria dos papiros gregos, a doutrina do daimon pessoal na teurgia clássica neoplatônica e a conjuração do diabo pessoal nos grimórios medievais, o Sagrado Anjo Guardião moderno pode:
Revelar e encaminhar o mago até o seu Destino.
Proteger espiritualmente o mago contra: i. obstáculos naturais que afligem a alma no curso da encarnação no reino da geração; ii. obstáculos impostos no caminho por terceiros, como ataques de magia negra, inveja, olho gordo etc.
Prover sabedoria e conhecimento acerca da deificação da alma e a prática da magia; fornecer conhecimento oculto sobre a Arte dos Sábios.
Conferir autoridade espiritual ao mago para conjurar espíritos diversos.
Compartilhar de suas virtudes com o mago, dotando-o de poderes miraculosos e magia de efeito taumatúrgico; capacidade oracular aprimorada para recepção de profecias.
Conferir dons paranormais ao mago como visão astral e audição espiritual.
Auxiliar espiritualmente o mago na deificação de sua alma.
Desde a aurora da magia todos os magos buscam por espíritos tutelares que possam lhes auxiliar nos pontos relacionados acima. Nas culturas mágico-religiosas da Antiguidade, quando nasceu o mito de São Cipriano no Mediterrâneo, a doutrina do espírito tutelar estava presente de diversas formas em inúmeros sistemas mágicos. Isso contribuiu profundamente para formação do mito. Na magia cipriânica encontramos esse arcano da tradição oculta sob o disfarce do mito faustino: através do pacto com um diabo pessoal – aqui representando o espírito tutelar do mago ou ideia do Sagrado Anjo Guardião moderno – é possível conquistar cada um dos pontos acima. Assim como Fausto, São Cipriano aprendeu magia diretamente com o Diabo.
Para os magos interessados na magia da Antiguidade e Idade Média, o Livro de São Cipriano convoca a herança mágica dessas culturas mágico-religiosas. Por exemplo, há muito de Jâmblico (teurgia clássica neoplatônica) em São Cipriano. Um dos afluentes de estudo deste trabalho que estou produzindo, O Espírito de São Cipriano, explora essa conexão entre Jâmblico e São Cipriano. Em um dos capítulos, Sintonização com a Tradição Cipriânica Através da Oratio Cypriani, eu explico uma consagração de estatueta de São Cipriano na perspectiva da teurgia clássica através de elementos que encontramos em o Livro de São Cipriano.
O mito de São Cipriano, sua cultura e magia, ao olhar profundo do ocultista diligente e atento revela secretos arcanos de magia. Tem de ter olhos para ver... Como eu relato nesse estudo, foi São Cipriano que me trouxe a Quimbanda. O kimbanda brasileiro encontrará íntima relação entre sua arte e aquela transmitida pela tradição cipriânica. Nesse caminho ele notará que a Quimbanda, como arte e ciência de magia, herdou, aprimorou e perpetuou os arcanos da tradição oculta da magia. Trata-se, portanto, de uma legítima tradição mágica.
O pacto Faustino com o Diabo tem íntima conexão com os pactos, alianças e compromissos assumidos entre os kimbandas e os Exus e Pombagiras com que eles trabalham. No imaginário popular Exus são demônios; para muitos fazer pactos com Exus e Pombagiras é o mesmo que fazer um pacto com o Diabo. O diabo pessoal que ensinou e inspirou a magia de São Cipriano e a de Fausto é uma alegoria tanto para o moderno Conhecimento & a Conversação com o Sagrado Anjo Guardião quanto para o contato com o Exu tutelar na tradição da Quimbanda. Um kimbanda é instruído e guiado por um Exu tutelar, um espírito familiar que o instrui, auxilia no curso de seu destino e é o agente por trás de sua magia; no entanto, não se trata de um Anjo de Deus, mas de uma alma deificada. E da mesma maneira que o adepto na magia de Abramelin precisa se esforçar para estreitar seus laços com o Sagrado Anjo Guardião, um feiticeiro na Quimbanda da mesma maneira se esforça para estreitar os laços com seu Exu tutelar. Assim como o Sagrado Anjo Guardião, o Exu tutelar guia os passos do feiticeiro, revelando seu destino e sua atuação magística na sociedade em que vive como um sacerdote chefe do sacrifício (nganga-ia-kimbondi).
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Cova de Cipriano Feiticeiro
Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite
NOTAS: [1] Esclarecendo: não existe uma conexão direta entre São Cipriano (ou Cipriano Feiticeiro) e a Quimbanda; o que existe é uma conexão indireta, uma influência mágico-espiritual através da feitiçaria ibérica presente na formação da magia brasileira, fundamentalmente no culto de Quimbanda. [2] Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2018.