De onde vem a Hierarquia dos Espíritos da Quimbanda?

Sendo Quimbanda é Pacto #3 ou a
Influência Demoníaca na Hierarquia da Quimbanda
A tradição ou vertente de Quimbanda no Brasil que inaugurou a confluência sincrética entre a corte infernal de demônios e os Exus e Pombagiras foi a Quimbanda Nàgô. Foi a Quimbanda Nàgô que elegeu Maioral de todos os infernos como regente da Banda na conformação da Trindade do Oposto: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth, e a sincretizar os demônios do Grimorium Verum com os Exus. A obra-marco que inaugura definitivamente no imaginário brasileiro a associação entre Exus e demônios foi escrita por um hermetista espírita, Aluízio Fontenelle em 1951: Exu.
Os Exus e Pombagiras na conformação moderna de Quimbanda são divididos (classificados ou distribuídos) em linhas de trabalho, previamente já abordadas – mas ainda não substancialmente – em ensaios anteriores. Por que existem tantas linhas de trabalho na Quimbanda? Pelo fato de que cada linha tem uma vibração de trabalho distinta. Por isso as linhas de trabalho também são compreendidas como linhas de atuação, acentuando a ideia de trabalho particular (ou peculiar) de cada Exu ou a linha que ele pertence. Essa mesma ideia, de que demônios diferentes deveriam ser convocados e imprecados para questões específicas, foi tema de diversos grimórios salomônicos, cipriânicos e fáusticos, bem como manuais de demonologia que se espalharam pela Europa na Idade Média e Moderna.
Em um primeiro momento do Culto de Exu no Brasil (período que se estendeu dos Sécs. XVI ao XIX onde o Espírito da Quimbanda como embrião foi fecundado dentro dos Quilombos e das revoltas nas senzalas) a tradição cipriânica da magia teve profunda influência na conformação de grupos e práticas espirituais como algumas famílias de Cabula, de Catimbó e de Macumba. No segundo momento (período inaugurado pelas primeiras publicações umbandistas sobre a Quimbanda no Brasil, meados do Séc. XX) as modernas demonologia (com sua corte infernal) e a tradição fáustica (incluindo a participação no sabbath, o pacto e a marca do Diabo) dos grimórios europeias influenciou profundamente a conformação da Quimbanda como a conhecemos hoje. Como tradição, a Quimbanda herda sua iconografia da daemonia (influência diabólica) fáustica e hierarquia demoníaca dos manuais de demonologia e grimórios. Para compreendermos a influência da hierarquização dos Exus e Pombagiras nos Reinos da Quimbanda e o sincretismo que se estabeleceu com demônios, precisamos primeiro procurar a gênese do entendimento sobre quem eles são efetivamente.
Em seu De Mysteriis, a parte da descrição dos deuses, arcontes, anjos, daimones, heróis e almas purificadas, Jâmblico também tece comentários sobre uma classe de espíritos irracionais, descrevendo-os como uma classe de seres entre todos os outros que nos circundam, desprovidos de juízo, razão ou julgamento, aos quais se atribui um só poder na distribuição de incumbências prescritas para toda entidade em cada parte do universo [...].[1] Existem certas classes de poderes nos cosmos [que são] limitados, desprovidos de julgamento e altamente irracionais, e que são capazes de receberem e obedecerem ordens racionais de outros, mas não têm entendimento de si mesmos e não sabem distinguir entre o verdadeiro e o falso, o que é possível e o que não é [na vida secular]. É uma classe de espíritos agitados, são assustadores quando abordados, extremamente arredios e vorazes por causa disso. O que me parece é que em sua natureza eles são levados pela aparência e são influenciados por outras coisas através de uma imaginação tola e instável.[2]
Jâmblico fala de uma classe de espíritos bem conhecidos em diversas tradições. Estes espíritos estão muito próximos da natureza humana, sendo influenciados pela mente e imaginação do homem. Na tradição dos grimórios medievais eles são os demônios descritos e classificados hierarquicamente:
Atribuídos a uma função específica; nos grimórios, demônios costumam ter apenas uma ou duas funções. Um demônio que atenda a uma demanda luxuriosa não pode atender alguém com problemas judiciais.
Capazes de responder e obedecer às ordens e instruções do mago. Diferente de deuses e anjos, demônios dos grimórios respondem diretamente ao mago.
Desconhecedores do que é falso ou verdadeiro, eles são acusados de mentir ao mago, que deve tomar cuidado. E é porque os demônios desconhecem o que é falso ou verdadeiro que os magos podem conjurá-los clamando ter a autoridade de Deus, de um mago falecido ou diabo pessoal (o espírito tutelar).
Assustadores quando abordados, extremamente arredios e vorazes por causa disso, para utilizar a descrição de Jâmblico; assim são apresentados os demônios dos grimórios quando conjurados pelos magos, que são aconselhados a tratá-los com punição e a pena de serem lançados as profundezas do inferno. Esse tipo de tratamento também é encontrado nos Papiros Mágicos Gregos, quando o feiticeiro ameaça o Sol de interromper o seu curso natural ou ameaça algum espírito de acusá-lo perante um deus.
São levados pela aparência, o que justifica o uso pelos magos medievais de regalias e aparatos cerimoniais protegidos por nomes divinos como coroas, anéis, robes, espadas etc., fazendo crer aos demônios que não se tratam de tolos, mas autoridades imbuídas de poder divino.
Jâmblico conclui dizendo que essa classe de espíritos arredios que na Idade Média tornaram-se os demônios dos grimórios, são influenciados por outras coisas através de uma imaginação tola e instável. Então podemos inferir que desde a Antiguidade o modus operandi de tratamento e comunicação com estes espíritos, distintos de outras classes de criaturas espirituais, já havia sido mapeado. Quando falamos de demônios, portanto, a análise de Jâmblico parece ser a mais congruente e coerente na história da demonologia, pois ela explica a teoria por trás das técnicas de evocação encontradas nos grimórios da Idade Média. Este modus operandi está presente nos Papiros Mágicos Gregos (muito embora não tratem da convocação de demônios como compreendidos na escatologia cristã), no Hygomanteia, na Chave de Salomão e em diversos grimórios modernos. E é interessante notar que Jâmblico está muito distante das interpretações escatológicas cristãs acerca do contato com os demônios e o perigo de danação no inferno e a condenação da alma. É a partir da interpretação de Jâmblico que faz sentido o tipo de tratamento agressivo com o qual o mago salomônico medieval estabelecia comunicação com os demônios; a uma entidade de imaginação tola e instável é fácil convencê-la de que irá ficar cativa dentro de uma garrafa ou urna de contenção.
Embora o modus operandi para se convocar os demônios dos grimórios possa ser rastreado até os Papiros Mágicos Gregos, eles mesmos não. Os demônios dos grimórios têm pouco ou quase nada em comum com os daimones dos papiros. Mas alguns dos demônios listados no Hygromanteia aparecem em O Testamento de Salomão, datado entre os Sécs. I e II de nossa era. Inferimos que a classe de espíritos que Jâmblico descreve já era mapeada e classificada bem antes de suas conclusões.
Na tradição dos grimórios os demônios eram classificados e registrados. Dois grimórios muito bem conhecidos por fazerem esse tipo de classificação e organização são o Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago e o Lemegeton. Na Magia de Abramelin os quatro Príncipes maiorais são Lúcifer, Satã, Leviathan, Belial e estes, por sua vez, comandam nove sub-príncipes, dentre os quais estão uma deidade ctônica grega, a deusa Kore, e quatro demônios-reis, Paimon, Óriens, Ariton e Amaimon, regendo 416 espíritos serviçais. O Lemegeton, por outro lado, é um grimório constituído por quatro livros, cada um contendo a sua própria classificação de demônios em escala hierárquica. Esse tipo de classificação, dentre muitos motivos, geográficos, sociais etc., serve de amparo à técnica de se conjurar um espírito com a autoridade de outro superior a ele, amplamente empregada nos papiros gregos. Em outras palavras, a hierarquização dos espíritos está conectada a fórmula mágica pela qual eles são convocados.
A seguir, mais pontos de conexão entre o sistema de convocação demoníaca dos grimórios medievais e modernos com o sistema de trato com os Exus e Pombagiras na Quimbanda.
Saber o nome do espírito confere ao mago poder sobre ele: essa gnose é tão antiga quanto à própria história da magia. Conhecer o nome de um espírito confere ao mago a capacidade de convocá-lo e direcioná-lo a cumprir o que o mago solicita. Na tradição de Quimbanda, o adepto deve conhecer bem o nome dos Exus e Pombagiras, suas cantigas (pontos cantados), suas assinaturas espirituais (pontos riscados) e suas zonas de atuação. Através deste conhecimento é possível convocar Exus ou Pombagiras nos seus respectivos pontos de força.
A intervenção do espírito tutelar: uma técnica de convocação comum encontrada na magia greco-egípcia dos papiros, na teurgia neoplatônica, no Hygromanteia e no Testamento de Salomão é conjuração de uma criatura espiritual menor em nome de uma superior. Na feitiçaria dos papiros daimones diversos eram convocados em nome do paredros, o daimon assistente; na teurgia neoplatônica daimones eram conjurados em nome do daimon pessoal; na magia de Abramelin demônios eram controlados pela intervenção do Sagrado Anjo Guardião; na tradição salomônica demônios eram convocados através do diabo pessoal. A ideia é ter autoridade sobre criaturas menores através do poder do espírito tutelar ou outra força superior; nos papiros daimones também eram conjurados em nome da autoridade de deuses; na tradição dos grimórios demônios eram convocados em nome dos arcanjos e da autoridade de Deus conferida ao mago. Na tradição de Quimbanda essa técnica está presente na relação que o adepto estabelece com seu Exu tutelar que, via de regra tem espíritos menores, égún diversos, trabalhando como servidores. Na Quimbanda entendemos que qualquer criatura da Natureza pode ser conjurada em nome e pelo poder do Exu tutelar.
Invocação hierarquizada: o Hygromanteia baseia toda sua técnica de invocação na hierarquia dos espíritos, estabelecendo uma ordenação dos espíritos superiores aos espíritos inferiores. Nesse caminho, forças planetárias, arcanjos e anjos são invocados antes da convocação do espírito menor. Nos rituais de Quimbanda, conhecidos como giras, pontos cantados diversos ao Chefe Impérios Maioral, Reis, Rainhas e demais Chefes de Falange são entoados pelos adeptos antes do ponto do Exu que se quer trabalhar. A ideia é saudar primeiro o Maioral de Quimbanda, demais Exus da casa/templo até a convocação do Exu de trabalho do ritual.
Símbolos, assinaturas e selos: símbolos têm sido usados para se comunicar com os espíritos desde a idade mais remota da magia. Na teurgia neoplatônica, símbolos (sunthēmata) são portais noéticos de comunicação com os deuses; na tradição dos grimórios estes símbolos são apresentados na forma de diagramas geométricos (pantáculos) e assinaturas (sigilos). Esse tipo de comunicação com os espíritos através de símbolos também está presente na Quimbanda por meio da ciência dos pontos riscados e cantados.
Um tomo completo poderia ser escrito comparando as técnicas utilizadas na Quimbanda para comunicação com espíritos e que são encontradas em tradições diversas desde a Antiguidade e antes. O fenômeno da incorporação, por exemplo, está presente nos cultos de mistérios da tradição greco-egípcia da magia, mas esteve ausente da tradição dos grimórios. A técnica da incorporação, portanto, veio até a Quimbanda diretamente através das culturas africanas, fundamentalmente a banto. O Corte ou sacrifício propiciatório as deidades da Quimbanda, bem como oferendas diversas a elas, também estão presentes nas tradições antigas como a teurgia e feitiçaria dos papiros, mas também estiveram ausentes da tradição dos grimórios salomônicos. Como as culturas africanas preservaram, desenvolveram e refinaram estas técnicas, é delas que a Quimbanda recebe essa influência.
Quando pensamos na organização hierárquica dos demônios em suas diversas classificações medievais, Reis, Príncipes, Condes, Duques etc., devemos levar em consideração que eles têm uma regência ilusória quando contrastada a regência de criaturas espirituais mais elevadas, segundo as concepções dos demonólogos medievais. Dessa forma, os demônios regem apenas o reino da geração ou os níveis subterrâneos do inferno, distintos dos seres celestiais que regem o reino dos céus. É por isso que os demônios recebem os títulos da nobreza terrena, não os títulos da nobreza divina. Embora autores como Stephen Skinner tivessem se esforçado para comparar esses títulos de nobreza terrena a forças planetárias, em verdade eles não representam ou descrevem qualquer poder além daquele da atuação dos espíritos em espaços delimitados. Os títulos hierárquicos dos demônios descrevem e espelham uma ação social, no entanto de organização espiritual dentro de seus respectivos domínios. Isso significa que tais títulos servem mais para delimitar a área de ação dos espíritos do que descrever qualquer de suas virtudes ou poderes. Isso está em plena harmonia com a hierarquia dos Exus e Pombagiras na Quimbanda. A hierarquia dos Exus e Pombagiras não reflete a capacidade de atuação ou os poderes deles, muito menos determina graus de importância ou subserviência. Ao contrário disso, estabelece limites para sua atuação nos Reinos de Quimbanda e entre seus respectivos Povos ou Falanges. Então, onde se encerra um campo (ou linha) de atuação de determinado Exu, imediatamente se inicia outro campo de atuação de outro Exu. Assim, Exus e Pombagiras Reis e Rainhas têm um campo de atuação maior do que Exus e Pombagiras Chefes de Falange. Isso também é visto nas classificações dos quatro demônios reis nos grimórios em que eles aparecem, tendo uma área de atuação muito maior do que os demônios os quais eles regem. Em diversos grimórios, por exemplo, o Rei dos espíritos aéreos tem autoridade sobre todos os espíritos aéreos e tal autoridade não transgride os limites de outros reinos elementais. Quando falamos de Reis no contexto dos demônios medievais, estamos lidando com forças estritamente elementais,[3] telúricas, conectadas ao reino da geração. Os ministros abaixo dos Reis transmitem sua regência a todos os espíritos menores e abaixo na ordem hierárquica.
A tradição dos grimórios também apresenta espíritos infernais distribuídos em ordem hierárquica, com Príncipes como Lúcifer, Belial, Satã ou Asmodeus regendo uma legião de demônios menores. Em alguns grimórios os quatro demônios reis são listados abaixo da regência destes príncipes maiorais do inferno ou conectados a eles, mas na maioria das vezes eles são tratados separadamente, com variações distintas, hora também listados e conectados a forças planetárias e arcanjos no reino dos céus. Isso é interessante de se notar, pois demonstra que os quatro demônios reis não estão na região do inferno (subterrânea) ou na região celestial, mas entre eles, na região elemental.[4] O que inferimos de toda essa classificação hierárquica é que ela diz mais sobre as zonas de poder ou pontos de força de atuação dos espíritos do que descreve suas virtudes ou poderes. No caso dos quatro demônios reis, eles são Reis porque regem sobre todas as operações dos reinos elementais. Isso é consistente com a posição dos Reis e Rainhas que regem os Reinos da Quimbanda: sua autoridade se estende a todos os Povos através dos Chefes de Falange que os regem. Então o que podemos observar é que a ideia de hierarquia espiritual contida nos grimórios, fundamentalmente aquela associada aos demônios, foi 100% aproveitada na Quimbanda na distribuição dos Exus e Pombagiras nos Povos em seus respectivos Reinos.
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Cova de Cipriano Feiticeiro
Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite
NOTAS: [1] Jâmblico, De Mysteriis, IV.1.182. [2] Jâmblico, De Mysteriis, IV.5.246. [3] Em um sentido mais técnico, que trataremos em outra oportunidade, é mais correto ou coerente dizer que os demônios reis estão ou são melhores associados às direções do espaço do que aos reinos elementais. Para fins de melhor compreensão e associação com a Quimbanda, didaticamente a forma como aqui o tema é apresentado servirá. [4] Mais precisamente as direções do espaço.