Da Goécia Grega a Goécia Brasileira

Excerto de um ensaio Quimbanda: a Goécia Tradicional Brasileira que será publicado na Revista Nganga No. 10.
Enquanto a palavra goécia é comumente traduzida como uivar, seguindo o precedente das autoridades do Séc. XIX que muitas vezes são inquestionáveis, uma tradução mais próxima seria lamentar, que se relaciona a um grande grupo de palavras conexas em grego, a maioria das quais se refere especificamente a ritos funerários antigos. O tom de voz usado nesses rituais distinguia o praticante da goécia, e a preocupação com o Submundo era igualmente explícita.
Muito antes dos deuses urânicos dos aristocratas gregos reinarem como deuses absolutos da religião oficial do Estado, os deuses ctônicos da Religião Antiga, os ancestrais deificados (ou glorificados), reinavam nos lares e no seio das famílias gregas. Nesse período o homem acreditava que a alma dos mortos permanecia perto deles e continuava a viver sob a terra. A alma do morto não se desassociava do corpo, mas permanecia com ele, na tumba. Os gregos entendiam que ao colocar um corpo morto na tumba, esta era preenchida com vida. A alma vinculada ao túmulo sentia saudades da família, dos amigos e da existência material. É por causa desta crença que viram a necessidade de construir túmulos, que se tornavam assentamentos de poder das almas a eles conectadas.
Os túmulos eram, portanto, moradas ctônicas (subterrâneas) dos mortos. Para tal, uma grande quantidade de terra deveria ser colocada sobre o morto, enterrado em uma cova. Um morto sem túmulo era um morto sem descanso, um errante sem o repouso que tanto almejou para si após as batalhas da vida. Seu destino era tornar-se um fantasma ambulante, sem um local adequado para receber oferendas, alimentos ou agrados dos familiares. Uma alma atormentada, logo, malfazeja, que prejudicava os vivos, destruía suas colheitas, lhes acometiam com doenças, os apavorava com aparições. E disso nasceu a crença antiga em fantasmas. O homem do Mundo Antigo acreditava que qualquer alma, sem moradia, era uma alma miserável.
Jake Stratton-Kent (1956-2023) corrobora com Fustel sustentando que em seus primórdios, a goécia como Religião Antiga, tinha um caráter e função social:
Os precursores e as manifestações mais antigas de goécia estavam principalmente preocupados com os mortos. Ao mesmo tempo, apesar de alguns paralelos e posterior sincretismo, [ela] tem pouca conexão intrínseca com a religião olímpica aristocrática de Homero. Seu papel principal foi benigno, pois serviu a comunidade: o de garantir que o falecido recebesse os ritos adequados para assegurar que deixasse os vivos em paz. Além disso, havia papéis adicionais. Estes incluíam o direcionamento de fantasmas, incluindo aqueles onde o enterro adequado não tivesse sido possível. Esses mortos sem descanso eram problemáticos, hostis e muito perigosos. É por causa deles a maior razão da existência dos ritos funerários.[1]
Ao abordar os mortos sem descanso em seu livro sobre goécia, Humberto Maggi destaca:
Até esse período, os mortos eram enterrados na propriedade da família, mas o renascimento da cultura grega que começa mesmo na era de Homero (depois dos séculos que se seguiram ao colapso da civilização micênica) levaram ao surgimento da pólis, a grande cidade, e a pólis forçou uma separação entre os vivos e os mortos, colocando os enterros fora de seus muros e restringindo severamente as práticas funerárias. Ao mesmo tempo, a intensificação do comércio colocou os gregos em maior contato com as culturas do Oriente Próximo, onde se acreditava que os mortos tinham muito mais autonomia e a capacidade de prejudicar os vivos. Esse distanciamento entre vivos e mortos e as ideias trazidas pelos navegantes, pelos comerciantes, e disseminadas nas novas colônias no leste do mar Egeu, criaram novos temores em relação aos mortos e, com isso, surge o goes grego para oferecer serviços necromantes para aqueles que acreditavam estarem sendo perturbados pelos mortos.[2]
Esta crença antiga do homem grego, de que uma alma sem túmulo era atormentada pela eternidade e condenada a assombrar os vivos, poderia ter chegado ao Brasil de alguma forma em algum momento? João José Reis, professor emérito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, garante que sim! Em sua obra A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, ele diz o seguinte:
Uma das formas mais temidas de morte era a morte sem sepultura certa. E o morto sem sepultura era dos mais temidos dos mortos, pois morrer sem enterro significava virar alma penada sempre pronta a atormentar os vivos. Morrer afogado, por exemplo. Na Polônia da segunda metade do século XIX, os afogados representavam a categoria de mortos mais frequentemente transformados em demônios. No interior do Brasil se reza «pras arma da onda do má», ou seja, pelos que morreram afogados. É um costume certamente aprendido do litoral, onde, no passado, não era doce morrer no mar. O negociante carioca Joaquim Luís de Araújo, residente na Bahia, fazia frequentes viagens a Lisboa e temia morrer no trajeto. Em seu testamento, de 1823, escreveu: «espero, na Misericórdia divina, eu morrer em terra». [...] Era desejável morrer em terra firme, não para ser enterrado em qualquer lugar, mas em local sagrado. Durante muito tempo, entre os habitantes de Salvador, esse local seria as igrejas. [...] «Os mais belos edifícios são as igrejas, pois Deus passa e deve passar à frente de tudo», escreveu em 1883 o viajante francês Claude Dugrível. Todavia, não só Deus e sua corte de santos nelas habitavam, mas também os mortos. [...] Assim como os cortejos fúnebres se identificavam com as procissões que tematizavam o enterro de Cristo, as sepulturas eram associadas com o local onde Cristo residia e era o senhor. As igrejas eram a Casa de Deus, sob cujo teto, entre imagens de santos e de anjos, deviam também se abrigar os mortos.
[...] Ser enterrado na igreja consistia também uma estratégia de não romper com o mundo dos vivos, inclusive para que estes, em suas orações, não esquecessem dos que haviam partido. Os mortos se instalavam nos mesmos templos que tinham frequentado ao longo da vida.[3]
Essa forma de goécia ou culto ctônico católico, resistente em Salvador do Séc. XIX, como podemos ver, é uma recessão moderna da Religião Natural dos gregos e romanos do Mundo Antigo e Antiguidade, adaptada ao cristianismo, principalmente em sua forma popular. Eu fiz questão de fazer esse recorte de uma prática fúnebre brasileira em meio uma discussão sobre a religião ctônica antiga dos gregos, porque muitos fecham os olhos para as influências e miscigenações culturais nos cultos mágicos brasileiros a partir dos pontos de vista religiosos do homem do Mundo Antigo e seus diversos cultos, de mistérios ou populares. A Europa recebeu esse legado das crenças religiosas da Antiguidade e o transferiu para nós brasileiros, modificado e adaptado como vimos na citação acima. Assim como o grego antigo ansiava por um túmulo para garantir seu descanso, sua alimentação, reverência religiosa e participação na vida ativa de seus familiares e comunidade no pós-vida, de igual modo o baiano de Salvador ansiava por ter a sua sepultura na igreja, porque ela era um portal para o Paraíso. Estar na igreja no pós-vida, comungando com os anjos e santos, garantia a continuidade da assistência espiritual sobre a alma até a ressurreição prometida no fim dos tempos e, enquanto isso, sua participação nos assuntos da comunidade, porque naquele período tudo, absolutamente tudo, de casos policiais a políticos e judiciais, era discutido nas igrejas.
Na goécia ou Religião Antiga, as almas, portanto, eram fixadas ao túmulo no rito fúnebre para que repousassem em paz e com alegria. E assim como existiam fórmulas mágicas para fixar uma alma em seu túmulo, de igual modo existiam outras fórmulas para fazer a alma sair temporariamente do sepulcro, a fim de servir para fins de necrurgia ou divinação, o que ficou conhecido como arte necromântica. Para dar descanso a um morto, assim como para utilizá-lo em uma iniciativa mágica, era necessário trazê-lo a presença do especialista; para isso se recorria a um uso privado das práticas religiosas, como purificações, preces e oferendas que visavam aliciar a cooperação das divindades relacionadas aos mortos e dos próprios mortos.[4]O princípio por trás da dupla atividade do goes é simples [...]: a pessoa que tem poder para resolver problemas causados por espíritos, tem poder para causar problemas usando espíritos.[5] Sobre isso Jake Stratton-Kent completa, esclarecendo a goécia grega como as raízes de sua posterior interpretação, a goécia salomônica demoníaca:
Outro aspecto do envolvimento da goécia com os mortos foi a necromancia [...], a arte da divinação por meio dos mortos, [que] se correlaciona naturalmente com a habilidade de guiar os mortos para o Submundo [e de lá convocá-los]. Aqueles que podiam guiar as almas para o Submundo [também] podiam trazê-las de volta, pelo menos temporariamente. Em seu contexto religioso original, a necromancia não era percebida como antissocial, e alguns dos principais centros oraculares necromânticos existiam em todo o mundo grego.
O aspecto mais sinistro desse envolvimento com os mortos foi à capacidade de convocar tais espíritos para outros fins que não a divinação.[6] Como a divinação necromântica, esta é uma consequência natural do papel de guia das almas. No entanto, também se relaciona muito de perto com a capacidade de lidar com fantasmas hostis de vários tipos. As artes do exorcismo e da evocação estão intimamente relacionadas [a esse trabalho necrúrgico]. É a partir desse aspecto de seu passado que a goécia está associada à evocação demoníaca. As distinções entre os daimones [espíritos] do Submundo e os mortos sem descanso sempre foram vagas. Além disso, a experiência em ritos relativos aos mortos envolve necessariamente os deuses e guardiões do Submundo.[7] Consequentemente, sob vários disfarces, despertar espíritos [do Submundo] tem sido [uma prática] associada à goécia durante grande parte de sua história.
A impressão causada pela confusão entre a goécia salomônica e a goécia [grega] é que a goécia [salomônica] diz respeito apenas à evocação. Há uma imagem estereotipada do magista convocando espíritos em um triângulo de dentro de um círculo, convidando-os a realizar isso, aquilo e outras coisas. Isso aparentemente reduz todas as operações de goécia para um mesmo formato [salomônico universal], o que não é o caso. Mesmo desconsiderando os aspectos religiosos e funerários, a goécia [grega] envolve métodos mágicos de todas as variedades, e é verdade que a sua magia envolve a participação de espíritos em praticamente todas as suas operações, mas essas operações são variadas.
O Grimorium Verum deixa claro que todas as operações são realizadas com a ajuda de espíritos, mas seus métodos incluem o que chamaríamos de feitiços e também métodos de divinação.[8] Na maioria das vezes, nessas operações, os selos de espíritos estão envolvidos no procedimento. Existe um método tradicional de causar danos a um inimigo através [da utilização] desses selos. No Verum isso envolve riscar os selos dos espíritos com raspa de caixão [usado] sobre eles. [...] Em geral o Verum emprega evocações com o propósito fundamental de forjar pactos com os espíritos [convocados], precisamente para que eles estejam dispostos a ajudar o magista em outros tipos de operação. Eu digo espíritos no plural por uma razão. Em contraste com a metodologia da goécia salomônica tradicional, como popularmente entendida, o processo do Verum prevê a possibilidade de convocar mais de um espírito de cada vez com o objetivo de forjar pactos. Embora qualquer processo evocativo seja exigente, em termos de tempo e esforço gastos, esse processo de evocações múltiplas é consideravelmente mais econômico e muito mais produtivo. A compreensão moderna [da goécia salomônica] prevê a conjuração de um único espírito para alcançar um resultado específico, e o espírito em questão pode nunca mais ser encontrado.[9] O Verum, por outro lado, prevê chamar um ou mais espíritos para iniciar um relacionamento de trabalho, para que, em ocasiões futuras, os mesmos espíritos possam ajudar o magista. Nessas relações subsequentes, o procedimento completo de evocação raramente é necessário; e geralmente só será empregado para iniciar relacionamentos com espíritos adicionais.[10]
Para compreender a Quimbanda como goécia brasileira, portanto, todo esse enredamento cultural ocidental deve ser levado em conta. Como dissertei no artigo A Quimbanda & o Ocultismo Moderno, a Quimbanda está inserida no contexto do esoterismo ocidental; nós devemos buscar nas fontes antigas e medievais o pano de fundo das correntes esotéricas modernas.[11] E este é o caso aqui. O propósito deste ensaio, portanto, deve fica claro, muito embora o trabalho não seja isento de dificuldades: encontrar na Religião Antiga grega as raízes ctonianas que i. influenciaram inúmeros cultos aos deuses posteriormente ao longo das eras, seja na própria cultura greco-romana, seja no catolicismo medieval europeu, demonstrando a influência necromântica da goécia nessas recessões posteriores, o que inclui os grimórios salomônicos tradicionais e modernos (como vimos na citação acima); ii. e que têm influenciado a nova síntese moderna da magia da qual a Quimbanda é uma expressão brasileira genuína.
A linguagem mítica grega evolui das formas agrárias e primitivas de interação com os espíritos até a religião dos deuses aristocratas que ocorre no tempo de Homero. Vamos ver mais de perto algumas das antigas crenças necromânticas dos gregos a luz de Fustel[12] e que levaram a sistematização das práticas fúnebres que ficaram conhecidas como goécia e do papel do goēs, o feiticeiro grego. A partir disso, buscar estabelecer pontes diretas com a goécia tradicional brasileira, a Quimbanda.
Os gregos do Mundo Antigo acreditavam que a alma de um defunto vivia no túmulo e que este, como vimos, a partir da presença da alma, tornava-se uma zona de poder, um assentamento através do qual o morto poderia receber oferendas, sacrifícios e lamentações fúnebres. A alma do defunto, portanto, estava conectada a sua ossada e a parte do solo em que ela se encontrava. Ali era sua casa. Além disso, a alma não estava obrigada a prestar contas de suas ações em vida: uma vez no túmulo ela não aguardava recompensas ou passava por qualquer suplício em detrimento de suas ações enquanto na legião dos vivos.
Assim como na frente dos templos havia um altar de sacrifício aos deuses, o túmulo era considerado um altar de sacrifício aos mortos. O túmulo era para esses gregos do Mundo Antigo um altar ctônico: flores e folhas o decoravam; sobre ele eram oferecidas frutas, doces, sal, leite, mel e o sangue de uma vítima sacrifical. Essas oferendas não eram comungadas com os vivos, mas oferecidas diretamente e somente aos mortos. O vinho e o leite eram derramados em libações diretamente sobre a terra do túmulo. Um buraco era feito diretamente sobre a terra para que as oferendas sólidas e o sangue dos animais imolados chegassem diretamente ao defunto. A carne derivada das imolações era completamente consumida pelo fogo, acompanhada das lamentações que o convidavam para comer e beber. Era uma impiedade os vivos tocarem nas oferendas dos mortos após estas serem consagradas e ofertadas.
As crenças que os gregos começaram a desenvolver sobre a alma e sobre a morte, portanto, exigiram a criação de regras fúnebres de conduta ritual, porque uma vez que os mortos precisavam de comida e de bebida, os gregos entenderam que era uma obrigação dos vivos satisfazer as necessidades dos mortos. E isso acabou por se tornar uma obrigação religiosa a ser cumprida, e não o capricho das decisões humanas. É assim que começa a antiga religião ctônica dos gregos, a goécia grega, cujos ritos e crenças perduraram até sua releitura salomônica com o triunfo do cristianismo.
Os mortos eram considerados divindades ou theos ctonius, i.e. deuses terrestres ou do submundo. Ó tu que és um deus sobre a terra, assim convocava um filho ao seu pai morto em Ésquilo.[13] Esta agora é uma divindade bem-aventurada, diz Eurípides ao falar de Alcestre.[14] Os romanos chamavam estes mortos divinizados de manes, os quais Cícero se referiu como seres divinos.[15] Cada defunto, portanto, era uma deidade reverenciada.
Os gregos e os romanos acreditavam que se os mortos não fossem oferendados e para eles não fossem realizadas celebrações fúnebres, os mortos saiam de seus túmulos para aterrorizar os vivos como sombras errantes, fantasmas. Estes mortos negligenciados podiam causar doenças, destruir laços familiares e provocar a aridez da terra. Até que a piedade para com os eles fosse reestabelecida, os mortos não davam trégua aos vivos. Os sacrifícios, as oferendas votivas e as libações faziam com que os mortos voltassem ao túmulo, restaurando a tranquilidade de seu repouso e sua condição divina, reverenciada. Dessa forma o homem voltava a ter paz com os mortos.
Os mortos desdenhados, aqueles que não recebiam nenhum tipo de piedade, eram os mortos sem descanso e, portanto, os espíritos malfazejos que os goēs tornaram-se peritos em convocar na época da pólis. Os mortos que recebiam a piedade e eram honrados como deuses ctonianos com oferendas e sacrifícios, tornavam-se espíritos tutelares. Estes, diferentes dos mortos sem descanso, ajudavam os vivos com proteção, sorte e prosperidade. Embora morto, e especialmente porque se encontrava nessa condição, ele possuía força e poder. Por isso a ele eram endereçadas rezas que lhe rogavam suporte e favores. Ó deus subterrâneo, me sejas propício, cita Eurípides, que acrescenta: cremos que, se não trivermos nenhuma atenção com esses mortos e desdenharmos o seu culto, eles nos farão mal e, ao contrário, nos farão bem se os tornarmos propícios com nossas oferendas.[16] Fustel conclui:
Essa religião dos mortos parece ser a mais antiga que existiu nessa raça de homens. Antes de conceber e adorar Indra e Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes orações. Parece que o sentimento religioso tenha começado com isso. Foi talvez a visão da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural e quis ter esperanças para além do que via. A morte foi o primeiro mistério; pôs o homem no caminhos dos outros mistérios. Ela [a morte] elevou o pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino.[17]
Qualquer kimbanda da Quimbanda ou oje do Égúngún sente-se familiarizado ao estudar a antiga necromancia grega, dada a incrível semelhança no trato com os mortos. Como venho expondo desde o primeiro volume do Daemonioum,[18] a feitiçaria de modo geral é universal; suas técnicas são universais, mudando pouca coisa de uma cultura a outra. A água é utilizada universalmente para limpeza, o sal é utilizado universalmente na necromancia para prover o morto com o sabor da vida novamente. Sobre o uso do sal eu fiz uma nota no Instagram:
Ao analisar o culto aos mortos na Grécia Antiga, Fustel de Coulanges diz: o túmulo era cercado de grandes guirlandas de ervas e de flores, que nele se colocavam doces, frutas, sal e sobre ele se derramava leite e vinho e, às vezes, o sangue de uma vítima.[19] Em Homero, os mortos vivem uma vida sem sabor. Era uma demanda dos mortos que oferendas lhes fossem entregues pelos vivos para que pudessem recordar dos sabores da vida. E os mortos exigiam oferendas doces e salgadas.[20] O gregos cultuavam o sal, lhe rendiam hinos, porque o consideravam grande, pois trazia sabor a vida.
Na cultura yorùbá o sal (iyò) é um dos elementos fundamentais de alguns òrìṣà e égún diversos. Em Ifá, Iṣéṣé Làgbà, Égúgún, no culto as Ìyámì Oṣoronga, o sal é amplamente utilizado, trazendo as virtudes do sabor e da conservação. Yẹmí Ẹlẹbuibọn diz que o sal é um elemento que nunca pode faltar no mais importante sacrifício propiciatório, o ẹbọ tùtù.[21] A Quimbanda Nàgô herda da cultura yorùbá muitos fundamentos, incluindo o uso do sal.
No Culto de Égún que se realiza na Quimbanda Nàgô no fundamento do Cruzeiro das Almas, é indispensável oferendas votivas salgadas e doces. É uma obviedade que os mortos, tendo sido vivos encarnados, comem tudo que os vivos comem: comidas salgadas e doces, e bebidas também. Me lembro que minha avó preparar um prato de feijoada para um falecido e dizer: ele gostava bem salgadinho. Cozinhava rezando o terço, com ele em mãos.
Estou tecendo este pano de fundo sobre a universalidade das técnicas de feitiçaria porque você poderia argumentar: mas a Quimbanda não é necromancia grega. Não é mesmo! E nós só utilizamos do nome goécia aqui relacionado a Quimbanda porque ela se conectou diretamente ao Ocultismo moderno[22] a partir da síntese de Aluízio Fontenelle na década de 1950, naquilo que ficou conhecido como nigromancia, a magia negra demoníaca.[23] E como a goécia nigromântica medieval e moderna deriva da goécia grega antiga como vimos acima na citação de Jake Stratton-Kent, aqui estamos, estabelecendo relações que explicam porquê a Quimbanda é goécia brasileira. E é nesse processo de estabelecer as relações que a ideia das técnicas universais de feitiçaria entra: há pouquíssima diferença no modus operandi grego de lidar com os mortos do modus operandi brasileiro. As imolações sacrificiais, as oferendas e muitos dos elementos que as compõem como mel, leite, doces, pães, sal, vinho, água, frutas, folhas e tubérculos etc., as lamentações e as técnicas de feitiçaria, é tudo muito parecido. Os mortos sem descanso dos gregos na Quimbanda são égún diversos ou kiumbas, e os mortos considerados deuses ctônicos e espíritos tutelares são os Gangas da Quimbanda.[24] Como veremos a seguir, assim como o goēs na Grécia Antiga, de igual modo o kimbanda no Brasil trata-se de um manganeumata das sombras, um proscrito social.
Anteriormente eu disse que os arcanos da sabedoria religiosa da Antiguidade no Mediterrâneo foram transferidos a Europa que, adaptando-os ao ritual católico ortodoxo e popular, os transferiu ao Brasil. Outro exemplo clássico dessa transferência e miscigenação mágico-cultural é o ritual das antigas carpideiras que aqui no Brasil faziam o mesmo trabalho do goēs grego, responsável pelas lamentações que conduziam as almas dos mortos até o Submundo.
As carpideiras ou choradeiras, como eram chamadas, possuíam um papel importante nos ritos fúnebres, principalmente em comunidades rurais e em cidades no interior do Nordeste. A função das carpideiras era lamentar através do choro acompanhado de ladainhas a partida do morto. Os objetivos eram: i. as carpideiras acompanhadas de lamentações coletivas, convocavam a alma do morto dando-lhe conforto fúnebre e, ao mesmo tempo, o dirigiam a casa de Deus, i.e. as igrejas onde haviam os sepulcros, dentro ou em sua área; ii. causar uma catarse coletiva, proporcionando aos parentes, amigos e vizinhos liberar as emoções contidas em favor da alma do morto no ritual do velório. João José Reis fala da herança cultural da prática fúnebre das carpideiras: O primeiro anúncio de luto era dado por carpideiras, amiúde profissionais experientes que com o seus choros convulsivos tornavam público o ocorrido. [...] Essa tradição – mais que portuguesa, mediterrânea, e também africana e indígena – funcionava como uma convocação [...]. Como em Portugal, havia carpideiras profissionais, que não podiam falhar em um ritual bem arranjado.[25] Essa passagem elucida a universalidade das técnicas de feitiçaria e, no tocante ao nosso objeto de pesquisa, a feitiçaria necromântica: entre os egípcios, gregos, romanos, europeus e brasileiros, sem mencionar outros povos e culturas, encontramos uma espécie de unidade entre as técnicas e formas de lidar com os mortos.
Essa prática das carpideiras foi assimilada pela religião brasileira ayahuasqueira conhecida como Santo Daime[26] em uma forma diferente. O ritual conhecido como A Santa Missa do Mestre Irineu é estruturado a partir do canto de dez hinos psicagógicos cujo objetivo é convocar e dar direção aos mortos sem descanso.[27] No primeiro hino psicagógico da Missa do Mestre Irineu temos:
Para os tempos que estavas no mundo
Mandaram te chamar
Na casa da Mãe Santíssima
Para ti, para ti apresentar
Senhora Mãe Santíssima
Eu vim me apresentar
Atender Vosso chamado
Que Vós me, que Vós me mandou chamar
Te apresenta ao Vosso Pai
Foi quem mandou te chamar
Teu tempo completou
Que é para ti, que é para ti te apresentar
Oh meu Senhor amado
Eu vim me apresentar
Atender Vosso chamado
Que Vós me, que Vós me mandou chamar
Confessa os teus crimes
Do mundo de ilusão
Que é para ver se eu posso
Para ver se eu posso,
para ver se eu posso dar o perdão
Os tempos que eu estive no mundo
De Vós, Senhor, nada me faltou
Só eu tanto ofendi
Tanto ofendi,
tanto ofendi a Vós Senhor
Os tempos que eu estive no mundo
Com a proteção de Vós, Senhor
Só eu tanto ofendi
Tanto ofendi,
tanto ofendi a Vós Senhor
Oh meu Senhor amado
Soberano santíssimo Senhor
Só eu tanto ofendi
Tanto ofendi,
tanto ofendi a Vós Senhor
Só eu tanto ofendi
Tanto ofendi
e me perdoai, Senhor
Diferente de outros rituais como a concentração ou os bailados, o rito da missa é carregado, pesado, choroso, arrastado e melancólico. Não há nenhum tipo de instrumento musical. Todos os hinos são apenas cantados e eles são puxados pelas mulheres, que atuam como carpideiras. E de igual modo, o aṣèṣè, o ritual fúnebre da Quimbanda Nàgô, assim como de outras tradições africanas e afro-disaspóricas nas Américas, é acompanhado de lamentações psicagógicas. Nesse ritual o couro dos tambores é afrouxado, criando uma atmosfera lúgubre e pesada ao serem tocados. No fim do toque tira-se o couro dos tambores, quando eles são deitados no chão em reverência ao morto cujo ritual dá direção a armada do Chefe Império Maioral, o Diabo. Então, não sendo a Quimbanda a goécia grega, ela recebe muita influência desta, via a herança ancestral nos legada pelos portugueses, que as receberam já transformadas, cristianizadas. Como demonstrei desde o segundo volume do Daemonium, a Quimbanda foi formada dentro de um caldeirão caudaloso de miscigenação cultural, recebendo no presente antigos arcanos mágico-religiosos do passado, preservando-os e adaptando-os a realidade de hoje.
Como escrevi no ensaio Quimbanda como Sistema Religioso, todo tipo de prática religiosa não sancionada pelo Estado aristocrata grego era chamada de goécia. A antiga religião familiar de culto aos mortos dos gregos, a partir da formação da pólis, foi rejeitada pelo Estado, muito embora as suas técnicas tivessem sido transferidas para a nova religião urânica dos deuses olímpicos. Na citação de Daniel Ogden que fiz na introdução deste texto, o autor lança luz sobre isso: as técnicas utilizadas pelos sacerdotes do Estado grego nas cerimônias oficiais, incluindo àquelas fúnebres, eram as mesmas técnicas utilizadas pelos feiticeiros (goēs) que realizavam ritos exclusivos para os indivíduos ou famílias que os procurassem e os pagassem. A diferença residia no que o Estado permitia: se a cerimônia fosse realizada por um sacerdote sancionado pelo Estado, era um exercício religioso legítimo; caso o sacerdote oficiante fosse um feiticeiro que oferecia serviços fúnebres particulares, era uma prática proscrita de feitiçaria ilegal.[28]
É só a partir desse momento, a formação das Cidades-Estado e a estruturação da religião grega aristocrática, que o goēs tornou-se um proscrito social. Jake Stratton-Kent diz:
O goen era originalmente bastante distinto do feiticeiro antissocial e marginalizado que se transformou. Ao contrário, as artes do goeten[29] foram realizadas abertamente em nome da comunidade. Mais tarde, o termo passou a ser vagamente intercambiável com outros, como os pharmacoi que derivam seu nome da manipulação das drogas empregadas, e assim por diante. Enquanto esses termos neutros se referem às artes praticadas, a etimologia da goécia vem do goen, uma pessoa. Não são as artes praticadas que definem a goécia, mas as habilidades pessoais e os recursos internos [do feiticeiro]. Isso vem de uma fase da cultura em que a magia não era percebida como uma esfera de atividade especializada ou marginalizada, mas permeava toda a existência.
Em fontes literárias, esse feiticeiro lamentador também era chamado de psicogôgogo ou guia de almas, um termo que tinha o significado adicional de necromante. Na peça Os Persas, de Ésquilo(524-455 a.C.), as obras do psicogôgogo e os efeitos mágicos inerentes ao ato de lamentar (gooin) são utilmente retratados. Há uma cena dramática em que a sombra do imperador persa Dario é convocada pelos ritos de um culto aos heróis, o que é altamente ilustrativo [...].Até certo ponto, no entanto, Ésquilo e outros simplesmente nos mostram que tais ritos e práticas faziam parte da cultura geral.
Tendo em mente que os ritos de luto eram vistos como possuindo o poder de evocação, também é um fato conhecido que os convocados também poderiam ser contratados. [...] e não há dúvidas de que existiam especialistas em tempo integral em evocações.
Tais ritos [evocatórios] e tais feiticeiros tinham o poder de guiar as almas para o Submundo e convocá-las quando necessário para o mundo dos vivos. De fato, eles [os feiticeiros] formaram uma ponte entre os mundos em sua própria pessoa. Tal guia de almas foi personificado pelo deus Hermes, que se tornou uma deidade preeminente entre os magistas. Ele era capaz de voar por longas distâncias rapidamente, descer e subir do Submundo. No período Clássico, após os sacrifícios oferecidos a alma do morto após seu falecimento, em seguida fazia-se um sacrifício a Hermes para guiá-lo pelo Submundo.[30]
De Platão no período clássico grego aos padres da Patrística e filósofos-teurgos neoplatônicos no fim da Antiguidade, o goēs foi perseguido e condenado; do feiticeiro necromante dos Papiros Mágicos Gregos as recessões medievais e modernas dos magos eruditos dos grimórios; as feiticeiras ibéricas acusadas de bruxaria, torturadas, mortas ou degradas; os feiticeiros africanos em Portugal e no Brasil; os índios guerreiros mandigueiros brasileiros; dos kimbandas das Macumbas cariocas aos táta-ngangas da Quimbanda e pais de santo do Candomblé e Umbanda; todos, sem exceção, foram no passado e permanecem hoje proscritos sociais. A necromancia, fundamental área de atuação desses feiticeiros, tem sido um tabu social da cultura ocidental, e assim permanecerá.
Finalmente, para encerrar essa seção e avaliarmos na próxima a Quimbanda como genuína manifestação brasileira da nova síntese da magia, vamos identificar métodos e crenças comuns do goēs grego e do kimbanda brasileiro.
Os Exus Coroados da Quimbanda são reverenciados pelos kimbandas como deuses do Submundo (theos ctonius), assim como os antigos mortos tutelares das famílias gregas o eram. Esses deuses do Submundo recebem oferendas e sacrifícios diversos. Como Fustel apresenta, na religião doméstica dos gregos antes da formação da pólis, os mortos divinizados, muito embora tivessem seus túmulos nas propriedades das famílias, eram reverenciados diariamente nas piras de fogo sagrado no centro das casas.
Isso nos traz de volta ao culto aos mortos. Ambos [o culto aos mortos e o culto ao fogo] têm a mesma antiguidade. Estavam tão estreitamente associados, que a crença dos antigos fazia deles uma só religião. Fogo, daimones, Heróis, deuses, Lares,[31] tudo isso estava misturado. [...] Vimos, aliás, que o que os antigos chamavam de Lares ou Heróis não eram senão a alma dos mortos, a que o homem atribuía um poder sobre-humano ou divino. A lembrança de um desses mortos sagrados estava sempre ligada ao lar. Adorando um, não se podia esquecer o outro. [...] Os descendentes, quando falavam da lareira, de bom grado recordavam o nome do antepassado. [...] Enéias, igualmente, ao falar da lareira que transportava através dos mares, designa-a com o nome de Lar de Assáraco, como se visse naquela lareira a alma do antepassado. [... É] um costume muito antigo sepultar os mortos nas casas, e acrescenta: Em decorrência desse costume, é também nas casas que são honrados os Lares e os Penates. Essa frase estabelece nitidamente uma antiga relação entre o culto dos mortos e a lareira. Podemos, por conseguinte, pensar que o fogo doméstico não foi originalmente senão o símbolo do culto dos mortos, que sob essa pedra da lareira repousava um antepassado, que ali se acendia o fogo para honrá-lo e que esse fogo parecia conservar a vida, ou representava a alma sempre vigilante.[32]
Interessante notar que a pedra (okutá) é utilizada para representar a presença de um morto em muitas culturas: egípcia, grega, romana, africana (banto e yorùbá), e ameríndia. Na Quimbanda o okutá é o coração da morada de um Espírito Ganga e, tal como os gregos antigos, o fogo é um elemento teúrgico da Quimbanda, o qual nunca pode faltar ao se reverenciar os Exus e Pombagiras.
Assim como o goēs grego era um especialista em lidar com os mortos sem descanso, de igual modo um Mestre de Quimbanda é especialista em lidar com égún e kiumbas diversos por meio das tecnologias mágicas que a Quimbanda oferece. A Quimbanda desenvolveu ampla estrutura para operar com estes espíritos, dando a eles finalidade de uso por meio do direcionamento e poder dos Gangas: Exus e Pombagiras. E como é possível averiguar, você leitor inteirado de minha literatura anterior desde o primeiro volume de Daemonium, assim como o grego do Mundo Antigo, a Quimbanda opera por meio da fórmula mágica universal do espírito tutelar.
É dessa forma que a Quimbanda é a goécia tradicional brasileira. Este é um tema que pretendo desenvolver com mais profundidade no futuro, para além dessa introdução inicial.
Continua na Revista Nganga No. 10.
NOTAS: [1] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2023, pp. x. [2]Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 23. [3] João José Reis. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. Companhia das Letras, 2022, pp. 239-40. [4] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 29. [5] Ibidem, pp. 26. [6] N.T. Ação mágica que ficou conhecida como necrurgia. [7] N.T. Compare com a citação (veja nota de rodapé no. 11) retirada do segundo volume do Daemonium acima, onde é demonstrado que os espíritos ctonianos, entre eles os mortos sem descanso, eram convocados por meio da autoridade de deuses ctônicos. Essa mecânica estrutural da goécia antiga foi readaptada em sua recessão salomônica, onde os espíritos menores do inferno são convocados e regidos por espíritos infernais superiores, como a Trindade Maioral: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth. [8] N.T. Como explorei no segundo volume do Daemonium, o Grimorium Verum quebra com o padrão salomônico tradicional e adota práticas mágicas que estiveram ausentes por um grande período da tradição salomônica medieval, como a realização de sacrifícios e a entrega de oferendas aos espíritos. Como Fustel e Stratton-Kent apontam, essas prática vêm da goécia grega antiga, mas banidas dos grimórios salomônicos. O Grimorium Verum as resgata. Demonstrei também que, por outro lado, essas práticas permaneceram presentes e preservadas nas tradições religiosas derivadas da diáspora nas Américas. A nova síntese da magia, portanto, constitui na restauração dessas antigas práticas mágicas no contexto da magia cerimonial. Esta, no entanto, revisada em sua estrutura, descartando muito da parafernália tradicional que limita as ações do magista, como a necessidade de círculo mágico e triângulo para convocações ctonianas. [9] N.T. Para a fórmula tradicional da goécia salomônica, veja Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 191. [10] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2023, pp. xi-xii. [11] Veja Antoine Faivre. O Esoterismo. Papirus, 2013, pp. 35. [12] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2009. [13] Ibidem, pp. 29. [14] Ibidem. [15] Ibidem. [16] Ibidem, pp. 31, nt. 9. [17] Ibidem, pp. 32-3. [18] Clube de Autores, 2019. [19] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2009, pp. 26. [20] Homero. Ilíada. Campanha das Letras, 2005, pp. 279. [21] Yẹmí Ẹlẹbuibọn. The Healing Power of Sacrifice. Athelia Henrietta Press, 2000, pp. 246. [22] Veja o artigo A Quimbanda & o Ocultismo Moderno. [23] A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação e de magia (quando ganha também o epíteto de necrurgia). A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios. Veja o artigo A Quimbanda & o Ocultismo Moderno. Veja também os livros Daemonium Vol. 2 (Clube de Autores, 2022) e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023). A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro. [24] Veja o artigo de Táta Kimumbu, A Catábase na Quimbanda Nàgô para diferença entre Exu, Kiumba e Égún. Em Revista Nganga No. 10. [25] João José Reis. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. Companhia das Letras, 2022, pp. 159-60. [26] O Santo Daime opera a partir da miscigenação da pajelança amazônica, do catolicismo popular, e do espiritismo. Há inserções indígenas, mas elas são menores. A partir de uma experiência visionária com a Virgem Maria aparecendo como a Rainha da Floresta por meio do uso da ayahuasca, Raimundo Irineu Serra (1892-1971) fundou a religião do Santo Daime. Trata-se de um genuíno culto de êxtase brasileiro. Através do espírito presente em uma bebida sagrada, o Santo Daime, os fardados (nome pelo qual se identificam os adeptos iniciados no culto) têm uma jornada extática guiados pelos hinos cantados em coro. [27] A Sagrada Missa do Mestre Irineu é realizada toda primeira segunda feira do mês, dia da Lua, i.e. um dia propício para conexão com os espíritos dos mortos. O objetivo da Missa do Mestre Irineu é fazer um trabalho de caridade para as almas sem descanso. Levadas a comungar com o espírito do Santo Daime, as almas são recolhidas e agregadas no Cruzeiro das Almas, presente em todas as igrejas da religião, e dali direcionadas pelo poder do ritual e pela luz de Juramidam. [28] Esse tipo de proscrição ocorre hoje no Estado brasileiro. Como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023), o feiticeiro e a feitiçaria são tabus sociais, indivíduos e práticas proscritas pela sociedade brasileira, desde o período colonial, com acentuação da perseguição religiosa no período do Estado Novo de Getúlio Vargas (1882-1954). Para contextualização veja três obras de Diamantino Fernandes Trindade: Feiticeiros e Feitiçaria no Segundo Império do Brasil. Editora do Conhecimento, 2019. História da Umbanda no Brasil Vol. 7: Macumbas e perseguições religiosas. Editora do Conhecimento, 2018. História da Umbanda no Brasil Vol. 9: Notícias históricas da macumba. Editora do Conhecimento, 2018. Veja também o ensaio de Nathália Fernandes, Legitimação e construção da identidade brasileira. Em Leal de Souza. O Espiritismo, a magia e as Sete Linhas de Umbanda. Editora Aruanda, 2019. Para uma visão degrada e degenerada do kimbanda feiticeiro da Macumba, veja Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil. Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1960. Vol. 2, pp. 405. Para completar o estudo preliminar e contextualização mais profunda, veja João José Reis. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro. Companhia das Letras, 2017. Veja também Luís Rafael Araújo Corrêa. Feitiço Caboclo: Um Índio Mandingueiro Condenado pela Inquisição. Paco Editorial, 2018. E de Renato Ortiz veja: A morte branca do feiticeiro negro. Editora Brasiliense, 2011. Todas essas obras corroboram com o que eu disse no primeiro volume do Daemonium (Clube de Autores, 2019): não houve qualquer cultura ou tempo na história da humanidade onde o feiticeiro, a margem das religiões estatais ou culturalmente aceiras, fosse bem visto. O feiticeiro desde o período grego clássico, sempre foi um proscrito social. Foi assim na Grécia Antiga, na Europa Medieval, e é assim hoje no Brasil. [29] N.T. Os termos goen e goeten utilizados pelo autor são equivalentes ao goēs: feiticeiro, encantador por lamentação. [30] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2023, pp. 126-7. [31] N.T. Os Lares eram os espíritos tutelares das famílias, representado pela pira de fogo, e que veio a se tornar a deusa Vesta na recessão mítica posterior dos deuses dos aristocratas gregos. [32] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2009, pp. 41-2.