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A Quimbanda & o Sagrado Feminino



Nota: Esse texto é uma coleção de postagens para o Instagram sobre a natureza feminina da Quimbanda publicadas em várias ocasiões e que agora foram organizadas em forma de texto. O conteúdo foi corrigido e editado para esta apresentação; ele disserta sobre o Sagrado Feminino na Quimbanda, nas representações iconográficas e arquetípicas do Chefe Império Maioral, o Diabo e da Pombagira.



O Diabo, a Pombagira & o Sagrado Feminino


A feitiçaria é o campo do genuíno Sagrado Feminino. Os Círculos de Mulheres modernos são uma paródia muito distante do verdadeiro arcano de iniciação e resgate ancestral do Sagrado Feminino. O moderno resgate do Sagrado Feminino não tem resgatado nada de fato; apenas maquiado (ou maculado quando noções ideológicas feministas e de gênero) as raízes ancestrais que representam o trabalho efetivo com o Sagrado Feminino. O resgate verdadeiro do Sagrado Feminino está na feitiçaria do sangue, da terra, da lua e no olhar correto sobre a ancestralidade e a selvageria da natureza. A Quimbanda é uma zeladora genuína do Sagrado Feminino. Na tradição de Quimbanda nós começamos o trabalho com uma aproximação devocional ao Chefe Império Maioral, o Diabo. Sua iconografia é a deusa Baphomet, que aglutina glifos de antigas deusas negras esquecidas e que detinham os arcanos verdadeiros do Sagrado Feminino. O Diabo é o deus das bruxas e feiticeiras porque é ele o transmissor genuíno do Sagrado Feminino; ele é a gnose de conexão com o Sagrado Feminino, a incorporação do Espírito da Natureza.


A imagem construída do Diabo a partir do glifo de Baphomet poderia receber o nome de legião, uma vez que é o conjunto híbrido de inúmeros glifos, totens primitivos e símbolos da Grande Creatix, particularmente a deusa fenícia Asherah. A saia ou cinto vermelho na cintura das Sacerdotisas de Quimbanda é uma assinatura da Deusa Asherah (Qutesh), a deusa-protótipo – de forma romântica e não técnica – de Pombagira nos mistérios antigos. Em algumas imagens do Atu XV do Tarot, O Diabo, aparece uma espada empunhada que sugere a palmeira, um totem primordial da Grande Deusa. A ninfa e o sátiro nos pés do Diabo espelham as criaturas chifrudas nas mãos da Deusa Asherah, que mais tarde serão substituídas por correntes. Asherah aparece como a Grande Mãe dos Deuses, descrita na versão babilônica da Deusa Ishtar, Rainha da Noite. Compare a imagem da deusa e as primeiras versões do Atu XV, O Diabo no Tarot de Marselha:



Desde o Séc. XV pelo menos, O Diabo tem sido representado como uma criatura andrógena. Decifrar seu simbolismo tem sido uma tarefa muito difícil porque seu verdadeiro significa foi perdido, mas manteve-se intacto em símbolos. Àqueles versados nos símbolos conseguem, portanto, acesso ao conhecimento primitivo dos mistérios que envolvem o Atu XV/Baphomet/o Diabo.


Dentro dos costumes e tradições da Quimbanda, a grande maioria dos Templos/Terreiros usa uma imagem muito similar à Deusa «Baphomet» para representar o «Imperador Maioral». Essa forma de idolatria também ocorreu por conta do sincretismo religioso ocorrido na formação do culto, principalmente pela grande influência das obras literárias do «mago cristão» Elipas Levi, criador da imagem, [...] um dos responsáveis pela profanação da «Senhora da Terra» e pela propagação de um dos maiores erros no círculo ocultista. [...] «Baphomet», segundo nossos entendimentos, não é a figura panteística do «Absoluto». [...] «Baphomet» é a junção das palavras gregas «Baphe-Metra», que corresponde a «Mãe tingida/sangrenta», a «tintura da Mãe» ou ainda, «o batismo da mãe» onde ocorre o encontro com a face da Deusa Sinistra. O nome, apesar de filosófico, representa o «Grande Útero Negro» que gerou e capacitou forças para guerrear contra a inércia das religiões estigmatizadas.[1]


Os arquétipos que alimentam a iconografia clássica de Maioral são essencialmente primitivos e femininos, uma legião de glifos da Deusa Negra, epitomizadas em mitos como os das deusas de Hécate, Astarte, Asherah, Innana, Lilith, Babalon etc. O Chefe Império Maioral trata-se de uma força poderosa que nos conecta profundamente e diretamente ao Sagrado Feminino.


Me chame de rameira, vagabunda, dissimulada e diabólica.

Fale mal de mim, faça minha caveira, acabe com a boa reputação que eu tiver, junte todas as ovelhas manipuláveis contra mim. Preocupe-se com o que eu faço da minha jornada, pense em mim, seja obsecado(a) por mim, deduza o que quiser a meu respeito e espalhe aos quatro cantos do mundo. Planeje me derrotar, perca noites pensando em mim e sonhe comigo quando fechar os olhos.

Não aceito meio termo.

Eu causo desconfortos, eu sei.[2]


Na Quimbanda Pombagira trata-se de um relicário reluzente de Luz Negra; em nossa teogonia, ela é herdeira de todas as deusas antigas, mães ancestrais e feiticeiras: Lilith, Astarte, Asherah, Circe, Afrodite, Medeia, Hécate, as Ìyámì e feiticeiras heroicas de todas as eras; Pombagira concentra todo poder do Sagrado Feminino; ela é a expressão de todas as antigas deusas.


A Pombagira, a tradição de bruxaria ibérica & o Livro de São Cipriano


A Pombagira como deidade brasileira (não existe Pombagira em nenhuma cultura além da nossa), sua iconografia e arquétipo, são heranças da influência que as bruxas ibéricas e O Livro de São Cipriano tiveram sobre a conformação do Culto de Exu no Brasil. As bruxas ibéricas convocavam um espírito assistente, uma forma de diabrete feminina que as assistiam prontamente e que elas nomeavam como diáboa. No Brasil a diáboa ibérica que sobreviveu na Quimbanda foi Maria de Padilha, já presente nas edições de O Livro de São Cipriano. Existem escritores que insistem que a Quimbanda não possui influência cipriânica. Toda Quimbanda é cipriânica! Toda Quimbanda é faustina! Toda Quimbanda tem Maria de Padilha e ela acabou por se tornar a guardiã da tradição! Toda Quimbanda tem o pacto diabólico!


A diáboa ibérica proveu as características femininas que adornaram as forças masculinas do Èṣú òrìṣà, do vodum Legba e do nkisi Mpambunijila para materializar as Pombagiras brasileiras, as diabas da Quimbanda.


Quando falamos de Quimbanda dialogamos com um riquíssimo imaginário sincrético fortemente conectado as heranças culturais e ancestrais africanas, europeias e ameríndias. As representações simbólicas da Quimbanda, em especial sua iconografia, se conectam a múltiplas míticas religiosas de procedências distintas que se encontraram e se miscigenaram no Brasil. Por trás das representações simbólicas da Quimbanda existe um pano de fundo, um repertório mítico multicultural que se condensa de forma variada na iconografia, principalmente a da Pombagira. Na verdade a Pombagira é tudo na Quimbanda, mas poucos se atêm a esse arcano de mistério.


Como falei acima, a força mágica da Pombagira na Quimbanda concentra a potencia sexual de Èṣú òrìṣà e de todos os òrìṣà femininos. Mas a iconografia de Pombagira está associada a um antigo imaginário grego, o da megera, arquétipo conectado ao uso libidinoso da força sexual, a paixão e a feitiçaria nos mitos de deusas como Hécate e Afrodite. Esse corpo mítico grego na cristandade foi corrompido e na Idade Média foi associado às bruxas e ao culto ao Diabo. No imaginário europeu essa pecha acabou por se manifestar em dois arquétipos que se concentram nas formas míticas de Pombagira no Brasil: a prostituta e a feiticeira. A imagem mais concreta disso se materializa em Pombagira Maria de Padilha: primeiro, celebrada personagem das cortes espanholas; segundo, transformada em uma diáboa (espírito tutelar diabólico e libidinoso) na feitiçaria popular e literatura ibérica; terceiro, transportada até o Brasil nas páginas de O Livro de São Cipriano, tornou-se não apenas uma Pombagira, mas a própria guardiã da Quimbanda.


Assim, na Quimbanda o Sagrado Feminino está nos domínios de Pombagira, a Rainha ancestral da feitiçaria tradicional brasileira e na veneração do Chefe Império Maioral, o Diabo. Pombagira resgata, preserva e transmite os mistérios arcanos das deusas da Antiguidade de muitas culturas: Lilith, Asherah, Inana, Astarte, Circe, Afrodite, Hécate, Oyá, Nanã, Yemójá, Ósun, as ancestrais Ìyámì etc. Trabalhar com Pombagira é convocar todo este poder e sabedoria ancestral para vida.


O genuíno resgate do Feminino Sagrado trata-se de um aprofundamento de nossas raízes ancestrais; a força deste resgate é movida por três agentes fundamentais: a Lua, o Sangue e a Terra em uma encruzilhada tríplice, fonte de sua potência geradora. Nesse entrecruzamento vibracional o Feminino Sagrado se apresenta de forma sombria, monstruosa, selvagem, viceral, destruidora, vampira ou demoníaca, pois seu Mistério envolve Vida e Morte em um contínuo ciclo de transformação. Na Quimbanda, a feitiçaria tradicional brasileira, este Arcano hierático se manifesta na presença em terra de nossas damas da noite, as rainhas Pombagiras.


Quimbanda, Pombagira & o Sagrado Feminino Visceral


A Quimbanda é selvagem porque diferente de outros cultos cristianizados ela não fantasia ou macula o cosmos/natureza com uma miragem positivista ou bem feitora. A Quimbanda entende o cosmos/natureza como ela é: selvagem! Na selva apenas prevalece a lei do mais forte. Como um animal que caça diariamente para sobreviver, a Quimbanda olha para o chão, para a terra. Ela não está nem um pouco interessada em trabalhar para o astral para evolução da consciência planetária ou da humanidade. Como um animal na selva, a Quimbanda se preocupa com o agora, com a realidade nua e crua da selvageria do homem (ou da natureza). A fórmula mágica da Quimbanda está na injunção alquímica do solve et coagula, na eterna adaptação diante dos fatos constatados na natureza.


Na Quimbanda o que vale é a lei da selva! É por isso que os antigos táta-ngangas falavam que a Quimbanda prepara o homem para se tornar mestre da vida. A vida é a passagem da alma pela corporeidade no curso do tempo-espaço, seus problemas e dificuldades, o espírito da adversidade. Todas as nossas buscas mais fundamentais têm essa raiz: a superação do sofrimento, seja fugindo ou o enfrentando. A adversidade, a selvageria, a calamidade são espíritos que todos nós encontramos em algum tempo na vida e que nos causam sofrimentos e traumas profundos, e lidamos com eles de forma torpe ou com sabedoria, dependendo das condições. Essa Natureza irascível, visceral, impiedosa, destruidora e ao mesmo tempo geradora, o espírito que permite nossa estadia material no seu corpo, alguns chamam de Sagrado Feminino, outros chamam de Diabo. A iconografia do Diabo na Quimbanda é o totem teriomorfo da deusa Baphomet, que aglutina os símbolos hieráticos arcaicos do Sagrado Feminino. Na Quimbanda lidamos com a força do Sagrado Feminino em sua manifestação mais primitiva, brutal e violenta. Não há lugar para bom mocismo na Quimbanda, porque no final só os sobreviventes restam. Na selva só fica vivo quem pode mais, ou se é caça ou caçador, presa ou predador. Esse é o caminho do Diabo, o Selvagem, a Natureza ou Sagrado Feminino.


Eu não sei até que ponto as pessoas entendem a importância ou profundidade do trabalho de Pombagira na Quimbanda. Ao apresentar os primeiros rabiscos sobre os Povos de Exu e Pombagira, Aluízio Fontenelle em sua obra Exu de 1951 compara a iconografia arquetípica de Pombagira ao Bode de Mendes e a Baphomet, frisando ser ele o Senhor do Sabbath. A guardiã da Quimbanda é uma figura feminina, Maria de Padilha, a senhora que abre as portas para o Reinado de Maioral, o Diabo. As Pombagiras são espíritos serpentinos, consideradas mais poderosas que os Exus e donas do mistério na Quimbanda. E é interessante que durante a grande caçada na Idade Média e Moderna a mulher tenha sido demonizada. O Diabo é uma fonte, um útero e ele oferece um ambiente, a vida.


A natureza da Quimbanda surge das entranhas da terra, do Sagrado Feminino. Espíritos de mortos, vamos nos lembrar, estão associados a terra e ao submundo. Na Quimbanda o Diabo é uma Deusa, não a mãe benevolente, mas a sedutora sereia que irá te levar ao fundo do mar, a ninfa que irá te levar as profundezas da terra, o sátiro que lhe mostrará o caminho até a mata escura.


Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela & Mameto Mwanajinganga

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite



NOTAS: [1] Danilo Coppini, Quimbanda: O Culto da Chama Vermelha e Preta. Via Sestra, 2019. [2] Pombagira: Intensa & Subversiva. Por Mameto Mwanajinganga.

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