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A Feitiçaria Cipriânica



Nota: Este texto é uma introdução ao tema que abordaremos em Quimbanda é Pacto (#2), a tradição cipriânica da Magia e alguns pontos de convergência com a Quimbanda. A intenção é apenas uma: explorar as influências mágicas da Quimbanda, nos aproximar de seus muitos afluentes. Poucas pessoas têm a compreensão de que a tradição cipriânica e a tradição faustina (ou faustica) da magia contribuíram profundamente com a Quimbanda e um vasto campo de pesquisas se abre frente a nossos olhos. O Livro de São Cipriano é citado por João do Rio em sua importante pesquisa do início do Séc. XIX, As Religiões do Rio, como um manual consultado por sacerdotes de seguimentos diversos da cultura afro-brasileira.




Cipriano deveria, em princípio, ser entendido como um guia para aquela experiência maravilhosa quando o feiticeiro finalmente alcança o conhecimento e conversação com seu espírito patrono.[1]


Muitas injúrias têm sido levantadas contra São Cipriano ou Cipriano Feiticeiro, considerado o patrono das bruxas e feiticeiras. O conteúdo das diversas versões de O Livro de São Cipriano tem sido condenado como alegoria, superstição ou feitiçaria de tipo infundada. De minha parte, costumo dizer que a história de São Cipriano contada nas muitas versões de O Livro de São Cipriano traz implicitamente o resumo da busca de todo mago: a aquisição de um espírito assistente que revele os segredos ocultos da magia e que também compartilhe seus poderes com o feiticeiro.[2] Para aqueles que têm olhos para ver, essas diversas versões revelam pérolas mágicas e segredos magísticos importantes, espalhados, imperceptíveis aos olhos destreinados. É como se estes grimórios cipriânicos por eles mesmos cumprissem a obrigação que a magia requer de todo estudante: de nenhum modo se deve revelar, a alguém que não seja adepto dessas ciências, as coisas sobrenaturais que se chegar a conhecer, assim adverte São Cipriano.[3] Estes estudos nomeados de O Espírito de São Cipriano exploram algumas das pérolas encontradas na tradição cipriânica da magia e que de alguma maneira influenciaram a Quimbanda moderna.


Hoje podemos dizer que São Cipriano representa uma tradição popular de magia, a tradição cipriânica, da mesma maneira que existe uma tradição salomônica, da qual a tradição cipriânica derivou muito de seu conhecimento. Tanto a São Cipriano quanto a Salomão são atribuídos vários grimórios, manuais mágicos de feitiçaria. Os grimórios salomônicos apresentam uma feitiçaria cabalística judaico-cristã derivada dos Papiros Mágicos Gregos. Os grimórios da tradição cipriânica apresentam elementos sincréticos retirados da tradição salomônica, em especial o Heptameron, o diabolismo e a magia folclórica europeia da Península Ibérica.[4] Os vários grimórios atribuídos a São Cipriano possuem um caráter ecumênico e sincrético, tendo alimentado a crendice popular europeia a seu respeito. Desde a Idade Média O Livro de São Cipriano e suas variadas versões têm sido respeitados e usados por magos, feiticeiros, curandeiros e benzedeiros de todas as esferas sociais. Ao seu redor paira uma aura de mistério. O simples fato de possuí-lo torna seu possuidor um feiticeiro, pois sua aquisição consciente realiza de bom grado um pacto implícito, quer dizer, comprar ou aceitar de presente O Livro de São Cipriano é equivalente a fazer um pacto com o Diabo. Esse conceito de pacto implícito vem de São Tomás de Aquino (1225-1274), muito embora seja de Orígenes (184-253 d.C.) a ideia de que a magia opere por meio de demônios, replicada tanto por Porfírio de Tiro (233-305 d.C.) quanto por Santo Agostinho (354-430 d.C.).[5]


São Cipriano tornou-se com o tempo no imaginário popular o santo dos feiticeiros. E muito embora essa visão de São Cipriano não seja a posição oficial da Igreja de Roma, que em verdade até condena e educa contra essa visão popular, é um fato que São Cipriano tornou-se um ícone central da magia popular europeia. Esse São Cipriano da magia e sabedoria popular serviu tanto ao Diabo quanto a Deus, é querido tanto pelo Diabo e suas hordas infernais quanto a Deus e suas milícias celestes. Na tradição cipriânica da magia, o Diabo não é um pária proscrito, mas o Senhor de suas próprias moradas. Assim como a magia copta do Egito, a tradição cipriânica estabelece um axis mundi, um caminho que leva o mago do Inferno aos Céus e dos Céus ao Inferno. Um mago da tradição cipriânica é, dessa maneira, um indivíduo que caminha com os pés abaixo da terra e a cabeça acima das nuvens.


O Livro de São Cipriano e suas muitas versões se trata de um grimório de magia popular. Suas diversas receitas mágicas, feitiços e encantamentos servem para encontrar tesouros perdidos, manter o gado saudável, obter uma colheita abundante, nomes bárbaros misturados a passagens bíblicas para socorrer adoentados e exorcizar endemoniados. A visão apresentada nos grimórios cipriânicos é animista e constrói uma ponte entre Deus e o Diabo. Como instrui São Cipriano: As almas aparecem como fantasmas só aos crentes nos seres espirituais, não aos incrédulos, porque nisso nada aproveitam ou pior, recebem maldições.[6] Não é difícil de entender! A Igreja de Roma através de Santo Agostinho principalmente demonizou todas as criaturas espirituais que residem na região sublunar e deuses em geral. Dessa maneira, daimones diversos como geniis-loci, quer dizer, os espíritos dos locais de poder, encantados, espíritos tutelares como almas dos mortos etc., todas essas criaturas foram demonizadas. Até a noção tradicional do daimon pessoal ou Sagrado Anjo Guardião foi demonizada e uma ressignificação para essa criatura espiritual foi construída na escatologia cristã pós-Agostinho. Antes da Igreja impor essa visão no Séc. IV d.C., todas essas criaturas eram compreendidas em suas funções demiúrgicas, quer dizer, desempenhavam um papel sólido na demiurgia do cosmos em nome e sob o comando das inteligências superiores. Os magos, xamãs e feiticeiros de todos os tempos sempre lidaram com essas criaturas espirituais. Ao serem transformadas em demônios, estes mesmos magos, xamãs e feiticeiros foram condenados por estabelecerem trafico e pacto com demônios de todos os tipos.[7] É por isso que a tradição cipriânica cria uma ponte (axis mundi) entre Deus e o Diabo e é por esse motivo que São Cipriano serve tanto a Deus quanto ao Diabo no imaginário popular.


É nesse imaginário popular europeu que os possuidores de O Livro de São Cipriano tornaram-se pessoas especiais. Nas muitas lendas existentes acerca de São Cipriano e seu livro, àqueles que o possuíam eram homens simples de uma comunidade que do dia para noite adquiriram terras e gado, e se livraram do pesadelo da doença. Por vezes, outras histórias dizem que uma miríade de desgraças atormentou a família que possuísse um exemplar de O Livro de São Cipriano em casa. Essas histórias existentes na tradição cipriânica demonstram o caráter popular e o apelo da magia que estes grimórios continham. Dessa maneira, para compreender os muitos elementos da tradição cipriânica não se pode deixar de ver o contexto popular em que ela esteve envolvida. Um elemento especial é a relevância espiritual de São Cipriano como protetor de feitiços, conjuros e malefícios. Isso se dá pelas poderosas orações de São Cipriano, a coluna vertebral da tradição cipriânica. No seu entorno foram acrescentados elementos mágico-cerimoniais. Essas orações cipriânicas têm origem na Europa Oriental, África e Arábia, onde testemunhamos o nascimento do cristianismo primitivo. Originalmente escritas em grego ou latim, elas se espalharam pela Península Ibérica, onde foram unidas a magia popular de Portugal e da Espanha.


São Cipriano tem sido considerado pela sabedoria popular um mago tão poderoso quanto Simão o Mago e Salomão entre os feiticeiros. Aos praticantes do catolicismo popular, benzedeiros e curandeiros, São Cipriano é um santo protetor contra magia negra e feitiçaria de todo o tipo, um exímio exorcista presente em capelas espalhadas por toda Europa. Um dos elementos míticos fundamentais da tradição cipriânica é o pacto que São Cipriano fez com o Diabo. Mas esse elemento mítico é apenas uma derivação do pacto estabelecido com o paredros ou espírito assistente dos Papiros Mágicos Gregos onde um mago conjura um daimon assistente e que evoluiu para o conceito de Anjo da Guarda dentro da Igreja Católica. Este Diabo ao qual São Cipriano convocou e realizou um pacto nada mais é do que o seu daimon pessoal ou na linguagem ocultista moderna, o Sagrado Anjo Guardião; no entanto, demonizado na apologia cristã. Desde a Antiguidade, na magia dos papiros ou na teurgia clássica de Jâmblico, a coroação do processo de aprendizado na Arte dos Sábios consistia em adquirir conhecimento e conversação com o espírito tutelar. É essa realização na Arte dos Sábios que confere ao mago poderes taumatúrgicos para realizar proezas fantásticas, pois é o espírito tutelat o professor que ensina ao mago os corretos conjuros e adorações. Na Tradição Oculta ou Tradição da Magia todos os magos são orientados a conquistar esse objetivo fundamental.


São Cipriano diz que o espírito tutelar ou gênio familiar, como ele chama, está por trás da inspiração dos grandes sábios da humanidade. Ele diz: Todo ser humano tem um gênio familiar que o inspira; mas os mais sábios, que se dedicam e se esforçam no cultivo das qualidades intelectuais e espirituais, são mais sensíveis a essa influência; por isso se tornam conhecidos como os grandes mestres da humanidade.[8] Nós nos debruçamos sobre essa questão no Daemonium (Vol. I):


O Sagrado Anjo Guardião é o desenvolvimento de uma ideia presente na tradição da magia desde seus primórdios: o espírito ou daimon assistente. De forma consistente, esse espírito já aparece em Platão (428-348 a.C.) descrevendo a experiência ou conhecimento e conversão de Sócrates com um daimon assistente que o inspirava. Esse contato de Sócrates com um daimon que o inspirava constitui um dos problemas mais fundamentais da filosofia socrática, porque a filosofia começou com Sócrates e constitui a fundação da sociedade ocidental. Dessa maneira, o conhecimento daemônico[9] recebido por Sócrates de um espírito está nas origens do pensamento ocidental. Constitui um problema pelo fato de que os estudiosos modernos têm dificuldade em aceitar que a razão e a revelação (ou divinação) podem ser cultivadas simultaneamente. Na filosofia antiga, e isso foi consistentemente defendido pelo neoplatonismo tardio, o pilar da inquirição filosófica era a revelação divina. Por conta disso o neoplatonismo tardio defende a ideia de que nenhum filósofo torna-se um teurgo a menos que tenha contato com um espírito assistente, o daimon pessoal. Em Apologia de Sócrates vemos o relato de que um sinal divino se revelava a Sócrates na forma de uma voz desde a sua infância, conferindo a ele uma direção a ser tomada nas suas decisões. E no Fedro essa revelação é chamada de sinal divino familiar.


São Cipriano concorda que o conhecimento e a conversação com o gênio familiar está por trás da sabedoria transmitida por grandes mestres do passado; uma criatura espiritual que inspira poetas, músicos, filósofos, religiosos, intelectuais, gênios e cuja sabedoria está por trás da construção do pensamento filosófico que fundou a cultura ocidental. Por outro lado, este tem sido o eixo ao redor do qual se estabeleceu a Tradição Oculta e é o arcano secreto dos magos. Como nós estudamos em outros escritos, existe um caminho de iniciação magística cuja coroação é o conhecimento e conversação com espírito tutelar. No Daemonium (Vol. I) nós estudamos que essa experiência mágico-espiritual é um fenômeno cultural universal, presente de forma distinta em tradições diversas, e que pode ser universalmente dividido em cinco etapas de iniciação. Neste estudo sobre a feitiçaria cipriânica vamos procurar na tradição elementos que constroem essa ideia, demonstrando como a história de São Cipriano, sendo ela tanto uma apologia cristã contra a feitiçaria quanto um mito popular, ocultamente transmite a ideia central da jornada de um mago.


Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite




NOTAS: [1] Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2019. [2] Veja Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2019. [3] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017. [4] Existe também uma tradição cipriânica na escandinava que não chegou a influenciar diretamente o Brasil ou a Quimbanda. [5] Veja A Demonologia de Porfírio de Tiro em Daemonium Vol. II. O Diabo com o qual São Cipriano travou contato e aprendeu os segredos ocultos da magia é, de fato, seu espírito tutelar. E se um pacto implícito é estabelecido com o Diabo ao adquirir ou ganhar um grimório cipriânico, então se trata do daimon ou espírito do próprio grimório. [6] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017. [7] Talvez você dê uma noiada agora: a evolução etimológica do termo daimon não sugere que os demônios que derivam dele se tratam das mesmas criaturas, pois ao se evoluir a linguagem e seus termos, descaracteriza-se a ousia (essência), dumanis (poder) e energeia (atividade) dos espíritos que supostamente têm seus nomes evoluídos. Um exemplo notório é o arcanjo Mikael da Cabalá e o arcanjo Miguel da tradição católica. O Mikael cabalístico é solar e representa a glória de Deus; o Miguel católico é marcial e representa o escudo e a espada de Deus. É por esse motivo que o demônio Astaroth da goécia medieval não se trada da deusa Astarte dos gregos na Antiguidade. [8] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017. [9] O conhecimento daimônico é a própria cosmovisão animista que permite o conhecimento e a conversação com espíritos diversos do Reino da Geração.





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